Ya no basta con rezar

Ya no basta con rezarAo domingo costuma haver churrasco no terraço de alguém. Vêm-se voar os “volantines”, os papagaios de papel dos miúdos em competição. Entre artistas, pintores e músicos que vou conhecendo, apresentam-me um, mais famoso na Europa que no Chile, o Nano Stern. Conhece bem o Porto e outras cidades europeias. Compõe música com raízes na música popular chilena, e já tocou em festivais de música por todo o mundo, como o “andanças” em Portugal. Tocou com outros músicos chilenos como o Chinoy, um cantor de folk, que tem boas razões para ser uma estrela nacional. Vejo-o improvisar várias vezes, sentado numas escadarias. No reportório desta tarde o Nano passou pela bossa nova, Violeta Parra e Victor Jaras.

O que me pediram este domingo foi mais difícil, um desafio. Na sequência de um programa televisivo, sobre os principais problemas de Valparaíso (sociais, económicos, de segurança), um canal de TV decidiu fazer um segundo programa para contrapor o primeiro. Solicitou um amigo meu, que é vocalista da banda “Perro Alegre”, conhecida pelas suas letras críticas (baptizada em honra aos milhares de cães vagabundos e ao Cerro Alegre, o bairro de colonização inglesa). E este amigo pediu-me para o acompanhar e falar de aspectos positivos: porque escolhi esta cidade, porque vale a pena viver aqui, etc. Estava com muito trabalho para a universidade e hesitei. Todos os entrevistados eram aficionados por Valparaíso, músicos, artistas, ou “dandies” do séc. XXI.

Foi disso que falei: da possibilidade que este lugar dá a cada um dos que aqui vive de ter uma vida como quer (apesar da falta de recursos), do ambiente de bairro e vizinhança que as grandes cidades perdem, da libertinagem e tolerância (derivada das sucessivas vagas de imigrantes que vinham “hacer América” ou “fazer-se” na América), da vantagem de faltar dinheiro (não se edificam tantos “monos” e a arquitectura anónima improvisa como pode), da presença constante do mar. Sei que a minha escolha por este lugar depende de um percurso pessoal de experiências, e da minha própria ideia de “ vir cumprir um sonho”, como faziam antes os imigrantes. O resto, a afeição que criei depois, veio com o tempo para conhecer o lado “feio” e o lado “bom” da cidade, e encontrar o “meu” espaço (a melhor praia, a melhor mercearia, etc). Perguntaram-me se gostaria de ficar a viver aqui e porquê. Fugi à pergunta, disse que Valparaíso foi o único lugar do mundo onde tive a mesma sensação que tinha quando chegava ao Porto depois de viajar (e tinha vontade de ir ver a ponte D. Luís). Para mim, Valparaíso é, tal como o Porto, um porto de chegada e partida, inevitável. Assim espero.

Valeu a pena terem-me “arrastado” para a entrevista. Enquanto o programa foi filmado, entraram lá em casa ladrões encapuçados, de pistola em punho. Milagrosamente não me roubaram nada. Quem geralmente ouve a campainha e abre a porta, sou eu. Tocaram à porta, ninguém ouviu, entraram. Soa irónico: a razão para eu não estar, foi ter ido ao programa contrapor problemas como este.
Mudei de casa. Continuo a gostar da cidade como gosto de poucas. A crítica é mais fácil de fazer do que criar as soluções. Essas exigem tempo e envolvimento para conhecer os problemas.

Tempo e envolvimento foi o que faltou a Oscar Niemeyer, quando decidiu oferecer à cidade um projecto para a antiga prisão, a “Ex- Carcél”. Amigo de Pablo Neruda, com quem partilhou ideologias políticas, o arquitecto brasileiro doou à cidade o projecto para um museu neste terreno. Nunca visitou o lugar, nunca viu a prisão, e quando as obras para demolir os edifícios penitenciários existentes iam iniciar-se, os cidadãos contestaram e paralisaram a obra. Ainda bem. A arquitectura de Niemeyer é icónica e está cheia de exemplos felizes e bonitos. Não é esse o problema. O que se ia destruir é um testemunho do passado duro da cidade e do Chile. Esta prisão teve, um dia, os presos políticos da ditadura militar e, hoje em dia, é adoptada pelos jovens da cidade como espaço cultural alternativo, onde há oficinas de artes, graffitis, espectáculo de música improvisada, carnavais culturais, etc. Da falta de liberdade à liberdade “liberada”.

Cheguei ao miradouro com a melhor perspectiva sobre a cidade. Fica no bairro mais perigoso, onde a polícia evita ir. No cimo dum cerro, Montedonico faz parte das chamadas “poblaciones callampa”, com lotes ocupados clandestinamente (e por isso água, saneamento e luz nem sempre existem), muita droga se trafica aqui. O Governo esforça-se por dar melhores condições de vida a esta gente, mas a falta de recursos desalenta as boas intenções. Todos os que aqui vivem vêm em busca de trabalho e uma vida melhor. O significado “feliz” de cidade – a “polis” romana – realiza-se quando cada um dos habitantes puder realizar os seus sonhos, ao contrário da falta de oportunidades do campo.

Já passaram muitos anos do auge exportador do porto e do esplendor boémio. Os imigrantes que chegam agora, não têm fortunas como antigamente. A nomeação Unesco não teve tanto o impacto benéfico como se esperava. Os cruzeiros chegam todas as semanas, mas a Valparaíso ainda lhe assenta como uma luva o título do filme dos anos 70, “Ya no basta con rezar”. Acrescento, já não basta criticar. Ando à procura de soluções, é para isso que me treinam na faculdade e estou em dívida para com esta cidade.

 

 

Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.

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