Dentro do barco, para além dos dois guias, do capitão José, de duas crianças com o nome de José e Jorge, estava um grupo de turistas com as suas roupas coloridas. Suíços, franceses, belgas e ingleses. Para completar o pacote turístico, um francês filho de emigrantes portugueses. José Ribeiro era o seu nome. O capitão José vestia uma camisola azul, umas sandálias podres, um chapéu e umas calças de fazenda ligeiramente arregaçadas como uns corsários. Estava na moda! Ofereceu-me umas folhas de coca para mascar. Aceitei e agradeci. Não estava com pachorra para aturar a “turistada” e a minha humildade, ou falta dela, fez-me passar as 3h30 da viagem a falar com os peruanos ou deitado na parte de trás do barco a apanhar sol e a ouvir música.
Os guias queriam claramente que eu fosse no tour para me sacarem mais dinheiro. Com palavras educadas recusei. Adolfo era o nome do guia que me tentou enganar. Tinha acordado 25 soles por toda a viagem para Amantani e o regresso, via Taquille, no dia seguinte. Aceitou. Paguei-lhe com uma de 50 soles. Deu-me uma nota de 20 soles de troco e ficou-me a dever 5.
Discretamente num canto do barco seguia Bernardina, peruana, regressava de uma visita ao filho em Puno. Tecia um fio roxo utilizando as mãos e os dedos dos pés com uma arte fabulosa. A única coisa que não passava discreta em todo aquele conjunto era o sorriso. Não troquei nenhuma palavra com ela. Dirigimo-nos a Amantani, ilha de influência Inca onde se fala quechua. Segui a viagem ao som do Godinho a tocar com os Clã. Excelente!
Chegamos. Adolfo disse que me arranjava um sítio para dormir por 15 soles com todas as refeições. Não queria ir com os turistas. Apresentou-me, pela primeira vez, Bernardina. Carreguei a minha mochila e ela pegou numa grande manta enrolada que colocou atravessada nas costas com um nó à frente. Era o saco das suas coisas. Timidamente sorriu e seguia pela areia grossa da praia para um socalco desviado do centro em cerca de 20 minutos. Nicolas, o seu marido de 43 anos, estava à nossa espera e estava na hora do almoço. Pousei as coisas no quarto que em sua casa me disponibilizaram e dirigi-me à cozinha. A cozinha era preta quanto baste chegando mesmo a ser completamente negra e escura. Cozinhavam a lenha de eucalipto em potes de barro. O almoço seriam uns ovos, umas batatas fritas e arroz. Amantani não tem quase carne e as pessoas sobrevivem com uma alimentação de subsistência quase exclusivamente vegetariana. É pouco turística. Vivem lá 4000 pessoas divididas em 8 comunidades. Fala-se quase exclusivamente quechua e, normalmente, as pessoas dominam algum castelhano para poder falar com os habitantes de Puno e com os turistas. Inglês, zero, obviamente.
O casal que me acolhia, Bernardina e Nicolas, tinha dois filhos. Um a viver em Puno e outro a viver no outro lado da ilha. Não há electricidade, embora toda a instalação eléctrica esteja feita. O ex-presidente Fujimori, numa visita que fez à ilha, trouxe um potente gerador que chegou a funcionar durante alguns meses. Neste momento as pessoas não têm dinheiro para pagar o gasóleo. Durante algum tempo, cada um dava 10 soles mensais para o combustível. Neste momento, não é possível. Há famílias, como esta, que não podem suportar tal despesa mensal. Recordo que 10 soles são 3 euros mas, a verdade, é que esta família com a venda do artesanato fabricado por Bernardina e das samponhas feitas por Nicolas não fazem mais de 100 soles mensais, ou seja, 30 euros. Incrível!
Almoçamos na cozinha sentados nuns bancos mínimos entre fumo e cheiro intenso a eucalipto. Para quebrar com o negro do local, 6 ratos domésticos passeavam pelo espaço para comer os restos de comida caídos no chão. Perguntei se os criavam para comer. Disseram-me que não. Não os poderiam comer. Era melhor vendê-los em Puno. Aliás, o cuy, nome deste rato comestível, é uma das especialidades da gastronomia peruana. Nunca tinham ido juntos a Puno. O valor da viagem era insuportável para a sua bolsa. Iam alternadamente, uma vez por mês para ver o filho. Depois dos ovos, e antes do mate, uma excelente sopa de quinua. Quinua é um vegetal que existe desde o tempo dos Incas e que ainda, nos dias de hoje, continua a ser utilizado. Terminei com um mate de munha, planta que só nasce nas ilhas de Amantani e Taquille. Excelente!