Este texto é uma cópia integral de um email enviado ao Gonçalo Cadilhe, em Janeiro 2004. As crónicas “Volta ao mundo por terra e mar” que ele foi publicando na revista Única foram a principal fonte de inspiração para a minha própria viagem, que acabei por fazer apenas em 2007.
Caro Gonçalo,
É com alguma tristeza que te escrevo este email, mas convencido de que tomei a melhor decisão possível nesta altura do campeonato. Adiei o projecto da viagem. Por tempo indeterminado…
Percorri o caminho todo… Colei um planisfério na parede no meu quarto; planeei; fiz as contas; estudei os mapas; pesquisei na net sítios para ficar, locais para dormir, meios de transporte; comprei um fato novo para as águas frias do Perú, da Nova Zelândia e da África do Sul; pus decks na 6´5”; falei com a minha família em casa; disse às minhas chefias no trabalho; tirei cópias a cores do “Stormrider Guide”; imprimi os mapas do “Wannasurf.com”; actualizei os meus contactos no Hotmail; e até cheguei a pagar as 75 Libras da pré-reserva do bilhete Round the World.
Fiz tudo isso. Mas, na hora “H”, o meu corpo disse-me para ficar.
Vi-me de pé, de braços abertos, a contemplar os tubos de Puerto Escondido; imaginei-me a dormir com medo em La Libertad e a surfar Pavones de manhãzinha. Pensei em comprar o bilhete para Guayaquil no Panamá e em passar uns dias no Hostal Los Delfines, em frente a Chicama, mal o swell subisse. Sonhei com Cusco e com a noite que ia dormir em Machu Picchu e julguei que ia apanhar ondas de merda em Iquique e Santiago mas, em compensação, ia curtir altas noites cheias de chilenas bonitas. Senti-me a embarcar exausto para Auckland e dormir a viagem inteira, sem precisar de mandar dois Lexotans para enganar o medo; a passar uma semana em Raglan a cansar as pernas mas a descansar o espírito e a passear por campos verdes que acabam dentro de água. Imaginei-me a fugir depressa da Gold Coast, assustado com o crowd e com a Coca Cola ao preço de uma noite nos Andes e ir, num instante, à grande barreira de coral dar um mergulho antes de partir. Acho que ia arriscar ficar a dormir por mil paus num barraco qualquer em frente a Uluwatu e raspar as quilhas em Padang-Padang; ia partir a noite de Kuta sem medo dos atentados! Lembrei-me também de visitar o Meireles, em Maputo, antes de rumar a Durban e Cape Town; e revi na memória aquela surfada do Occy em Jeffreys Bay ao som de Slaves e Concrete Blonde.
Lembrei-me de tudo, pensei em tudo, sonhei com tudo. Mas, curiosamente, não me imaginei a chegar. Não me imaginei a abraçar os meus amigos no aeroporto, a contar-lhes todas as aventuras, as ondas que apanhei, as pessoas que conheci. Não me imaginei a fazer uma sessão de slides lá em casa. Realmente, esqueci-me de me imaginar a voltar…
A decisão de ficar foi tão ou mais difícil como a de partir. Mas, de facto, esta é uma viagem que eu tenho que fazer noutra altura, por mim. Não por outra pessoa; não como uma tentativa de fazer desaparecer um sentimento; não por uma esperança maldita de me perder no mundo e um dia alguém me deitar a mão.
Ou, então, foi só medo…
Este é um projecto que fica adiado, em carteira para concluir mais tarde. Sozinho ou acompanhado. Agora, já tenho o circo todo montado e para partir só preciso dos mesmos três dias que demorei a destruir um projecto de alguns meses.
Mas só quando o corpo disser. Porque a cabeça… essa engana muito!
Este texto faz parte do meu livro “O primeiro passo”, que pode ser adquirido em formato papel tradicional ou em formato e-book clicando no seguinte link.
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