Valparaíso foi a cidade que vi, pela primeira vez na vida, como cidade da América Latina. Era uma escala de cidade que não conhecia, que nunca tinha visto à minha frente. É simplesmente arrebatadora a vista que se tem ao chegar aqui, vindo de Santiago. Aliás, a paisagem que se observa nesta viagem vai mudando muito, desde o interior até à costa: em Julho, com um frio incrível, numa cidade cinzenta, conhecida pelos seus níveis exorbitantes de smog, que deixa ver os Andes no meio da neblina, depois atravessa-se uma zona de floresta verde, com cavalos e pastagens (aqui vi, em algumas partes, imagens que me recordaram a Suíça), para passar em seguida pelos de produção do vinho (região de Casablanca). Estas vinhas não são como no Douro, aqui os vales são planos e baixos, estendem-se por uma região maior.
A chegada ficará para mim associada a este pasmo de ver uma cidade de casas “microscópicas” encastradas pelas encostas acima, sobrepondo-se umas às outras, encavalitando-se, debruçando-se sobre o mar. Uma baía, várias montanhas “cerros”, um anfiteatro sobre o mar. O que interessa aqui é que, apesar do turismo, vivem cá muitas pessoas e, à imagem da favela brasileira, aqui auto-constrói-se muitas das habitações onde se vive. As casas são de lata, de chapa ondulada, de madeira e adobe que, em algumas casas, tem mais de duzentos anos. Algumas das madeiras estruturais foram importadas dos Estados Unidos e da Europa… e cá chegaram de barco.
Nesta cidade faz-se jus à tradição de País com marinha, não só pela memória dos marinheiros que vieram da Irlanda, Inglaterra, Alemanha, Holanda, França… mas também pela marinha que hoje existe, dos marinheiros que andam fardados na rua, da maioria dos antigos edifícios que foram alfandegas. Uma cidade que é mais que tudo um porto: uma baía porto, onde se escutam os barcos que chegam e os que partem, turísticos ou não.
Aqui, fui descobrindo realidades que servem para caracterizar e explicar melhor uma cidade ou um País. A que mais me choca, no meu dia-a-dia é a dos os animais e o trato que lhes é dado. Os cães auto-multiplicam-se ao minuto e contagiam-se com sarna. Ficam com peladas, uns são atropelados, outros adoptados, uns com raiva, outros com sobras de comida caridosa… a delinquência canina era algo que não conhecia tão massificado. Atiram-se aos carros a ladrar, atacam-se uns aos outros ferozmente pela comida e pelas cadelas. E as pessoas, essas assistem passivas.
Junta-se a isto um bêbado de segunda-feira à noite na cidade portuária, já com o nariz aberto, escorrendo sangue, a garrafa partida na mão, numa perpendicular da Calle Serrano, no meio do lixo e urina. Zona de consumo de álcool a preços ridículos, a porta de entrada de droga, do convívio com travestis, da salsa, da cumbia, da rumbia, do rock dos anos oitenta, do tango emprestado, da bossa nova arranhada em “Portiñol”… o lixo na rua, com cheiro a húmido, em sombra… algo que fará parte do eventual padrão de cidade-porto como o Porto, Génova, Veneza, Valência ou Tanger?
Isto faz parte desta realidade que não conhecia, que é também uma marca da diferença de cultura, do respeito que se tem pelos animais, da leitura que se faz do espaço urbano. Na mesma rua em que acontecem estas cenas há uma mulher que vende empanadas fritas, um homem que vende fósforos e cotonetes. E na mesma praça onde se assalta o turista à noite estão, durante o dia, muitos peritos do xadrez, adictos do jogo e pessoas “nativas” ou que aqui chegaram, boas para a conversa. Na praça O’Higgins está, aos domingos e quartas-feiras, a feira de antiguidades e livros, o velhote que vende artesanato de alpaca Mapuche, o homem com marionetas, alguém a vender flores e plantas, os adeptos dos “Wanders” (um dos clubes de futebol de cá), os escolares fardados como signo de alguma igualdade.
Dizem as estatísticas que um turista que visita Valparaíso está nesta cidade uma média de 5 horas. Pois eu imagino que não vê nem 5% da mesma.
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.