Fui directa a Pichilemu, o encontro estava mais que marcado… estava ansiado há muito tempo. Foi o meu baptismo de Pacífico. A primeira viagem que realizei neste continente foi a um lugar que veio a ter proporções mágicas sobre mim. Primeiro porque ansiei muito chegar aqui (tornou-se mítico) e depois porque, ao chegar, não sabia que a realidade ia superar as minhas expectativas. Esta sensação tornou-se algo comum e ainda bem: a realidade tem sido, muitas vezes, muito melhor que qualquer plano ou ideia.
E, mais uma vez, as pessoas certas estão aí. Na hora certa, no lugar certo… o quadro pinta-se de forma mestra. Foi, sem saber, sem a conhecer, que falei à Rafaela sobre ir surfar. Ela é brasileira e eu pus-me a falar sobre ir a Pichilemu. Resultado à vista: a Rafaela é bodyboarder, fala o mesmo idioma que eu, também conhecia Pichilemu antes de lá chegarmos, também quer ir lá enquanto as aulas não começam a sério, também quer ir a Machu Pichu, à Patagónia, etc, etc. Resultou, conjunção perfeita.
Partimos poucos dias depois de nos conhecermos. Na verdade, ainda não nos conhecíamos e não sabíamos, também, que nos tornaríamos grandes amigas e companheiras de momentos únicos. Várias vezes imaginei ter, em Portugal, uma companhia para surfar e viajar tão motivada como ela. Entendo agora o sentimento de união e reunião que toca a todos os imigrantes portugueses, que se unem em comunidades. Eu e a Rafaela arranhamos um “portinhol”: eu nunca tive aulas, ela não gostava das dela.
Chegámos a Pichilemu de noite, sem saber onde íamos ficar, e as peripécias começaram cedo. Alojamo-nos num hotel barato, saímos para jantar e, com o nosso péssimo espanhol, conhecemos um local (que viemos a saber no dia seguinte que era o film-maker de um bom filme de surf chileno “Chile Oculto”). Perguntei onde havia lugares baratos para ficar uns dias e… mudança de planos: entrámos no hotel e tirámos as nossas coisas, o film maker leva-nos até a umas cabanas em frente à praia, mais baratas e ainda nos oferecem, no dia seguinte, um peixe pescado de tarde, cozinhado na lareira. Naada planificado, “só tínhamos que vir, go with the flow”. Mais tarde usámos o método da não planificação e vimos que o bom resultado depende de saber quando usar a não planificação! Sem dias marcados, sem chegadas a lugares certos, com inversão repentina de destinos… mas com consciência de cada passo. Regra sagrada: evitar chegar de noite (tudo o que não fiz desta primeira vez).
Na manhã seguinte chegámos ao lugar mágico de “colectivo”, o transporte parecido ao táxi, que levava a minha prancha metade de fora e… uns quantos palavrões saíram-me da boca: “quantas secções dizias que tem a onda??? Meu Deus, isto é o paraíso, parece uma revista, um clássico!”. Passado o espanto de chegar e ver o mar, surfámos as primeiras duas sessões na segunda secção do inside, para nos habituarmos. Foi aqui que conhecemos ao legendário Yeye, um chileno que abandonou a sua cidade para ir viver em Punta Lobos e aí construiu a sua cabana onde vive feliz da vida. Dá umas aulas de surf, trabalha na construção de cabanas, surfa Punta lobos quando está grande… Vive sem água quente e sem luz eléctrica, deixou tudo para surfar, para surfar sempre que está bom (360 dias por ano). Foi o Yeye quem me levou a conhecer a entrada pelos morros e a primeira secção da onda e que me ensinou a ler o mar nesta onda: a estar atenta ao set, ao local onde está o banco onde ninguém apanha a onda e onde estava mais fácil dropá-la. As primeiras ondas foram, lembro-me bem, um misto de medo com adrenalina. Vê-las perfeitas, sempre iguais, com as pernas e braços cansados de tantos metros, com medo de dropar e ao mesmo tempo querer fazê-lo.
Sem sabermos, eu e a Rafaela passámos durante estes dias um dos momentos mais felizes das nossas vidas, que recordamos muitas vezes. O pouco que escrevo aqui não faz jus ao que vivemos lá.
– “Não vale a pena contar isto a quem não surfa, ninguém vai perceber. E mesmo os que surfam não vão entender…”.
– “Ai guria”, dizia ela, “ainda bem que você estava lá para ver, porque assim eu sei que não delirei e não preciso explicar o que senti, como tento fazer com os meus pais…”
A Rafaela referia-se às ondas que vimos uma da outra, aos pinguins que nadaram ao nosso lado e ao lobo-marinho enorme que nos pôs em êxtase e medo ao rebolar-se ali ao lado. Foi, provavelmente, uma das experiências mais intensas que já tive de relação com natureza animal, com esse natural não zoológico e enjaulado.
Agora sou eu quem diz: Ai “guria”, ainda bem que foram os teus olhos que viram o mesmo que os meus naqueles dias. Há pouca gente com este privilégio. Isto não se rouba, não se vende, não se compra. De cada vez que volto de lá é a ti que penso contar as altas ondas, os medos e sustos, porque há pouca gente que se interessa por isto e assim não corro o risco de exagerar ou diminuir o que vivi. Aquele lugar é mágico.
Boa noite Sofia, gostaria de saber quando vc fez esta viagem, pois pretendo ir para lá e estou coletando o maior número possível de informações.
Abs,
Laertes.