Travessia no deserto
Arica, Chile
22 Agosto 2007
No dia a seguir ao terramoto no Peru, quando fui para comprar o bilhete de autocarro, estava à espera que me dissessem alguma coisa. Apesar das imagens que vi em alguns jornais, que mostravam a Panamericana destruída em vários troços, acreditava que era possível passar mas esperava, pelo menos, um alerta. Um aviso que a viagem poderia demorar mais do que as dezassete horas e meia normais. Mas, na verdade, também não quis perguntar. Eu queria mesmo viajar naquele dia e uma informação cruzada podia confundir os planos na minha cabeça. Inseri o número do cartão de crédito no site da Cruz del Sur e comprei o bilhete: Lima-Tacna; Domingo 19Ago, 15:30; serviço Cruzero salão Vip; lugar 4A. Viajar de autocarro no Peru, nas melhores empresas e classes de serviço, é um luxo!
A maior parte da viagem seria feita de noite, por isso não estava à espera de ver muitos cenários de destruição resultantes do sismo. Por um lado, preferia assim. Tenho sempre algum pudor em observar esse tipo de coisas como se fossem uma atracção turística. Mas, nas proximidades de Chincha, o autocarro abranda drasticamente durante alguns quilómetros e acaba por parar no que se percebe ser uma fila interminável.
– Tem-se demorado, em média, três horas a passar – ouço a hospedeira dizer para um passageiro amigo.
Um dos procedimentos de seguranças destas empresas é viajar com as cortinas das janelas fechadas mas, por esta altura, eu já estava a infringir. Do conforto no meu assento-cama com 180º graus de inclinação e enquanto passa um filme com a sempre irresistível Sandra Bullock, começo a ver os primeiros sinais de devastação. A cidade está completamente às escuras e há centenas de pessoas na rua, à face da estrada, com lanternas e sacos às costas. Os faróis da caravana de autocarros (outro procedimento de segurança é viajar em caravana) conseguem, mesmo assim, revelar alguns escombros do que suponho serem casas e lojas totalmente destruídas. Naquele ponto da estrada, o alcatrão cedeu e caiu três metros. Apenas se consegue passar por um desvio de terra improvisado pelos militares. Um sentido de cada vez.
Logo a seguir, o cenário repete-se a passar por Pisco e Ica, duas das cidades mais afectadas e onde paramos para recolher passageiros. Creio que não está ninguém dentro das casas, não sei se por medo de novas réplicas, se por uma necessidade absoluta de estar em grupo numa altura destas ou se por estar demasiado frio. As pessoas puseram os colchões das camas na rua e nos alpendres das casas que se mantiveram de pé ou estão reunidas à volta de uma das várias fogueiras acendidas na beira da estrada. Consigo-os vê-las ali tão perto, a dois metros de distância, mas elas não me vêm a mim. Os vidros escuros e as luzes apagadas dentro do autocarro da Cruz del Sur não permitem. Ainda assim, apontam as lanternas na esperança de chamar a atenção de alguém. Vejo famílias inteiras… pai, mãe, filhos, bebés sentados no meio dos escombros do que deveria ser a sua casa, abrigados apenas por um guarda-sol ou um cobertor. Sinto vergonha.
Um miúdo cola-se à minha janela. Não bate, mas faz gestos desesperados… como se eu fosse a sua última hipótese de salvação. Não consigo ignorá-lo mas tenho pouca coisa que lhe possa dar. Comigo “apenas” carrego a mochila que transporta o computador, a máquina fotográfica, documentos, cartões bancários e o pouco dinheiro que me resta. Toda a minha roupa está na mala, no porão do autocarro, por isso estou decidido a entregar-lhe a minha única sweat-shirt, uma garrafa de água meio vazia, os 40 dólares que levo escondidos como backup de emergência e o cobertor fornecido pela companhia a autocarros.
Mas não tenho como abrir a janela. É apenas um vidro inteiro e sem fechos, mais uma vez por razões de segurança. Levanto-me e peço à hospedeira para abrir a porta apenas por um instante, para conseguir atirar aquelas poucas coisas.
– Não podemos, apenas no terminal. Nós trazemos algumas coisas que reunimos em Lima entre os funcionários. Obrigado pela sua intenção. Que Deus lhe bendiga.
Volto para o meu lugar e caem-me algumas lágrimas de angústia e revolta antes de fechar definitivamente a cortina e mergulhar no meu assento.
Chegamos a Tacna com mais de quatro horas de atraso e, depois de uma discussão acesa com o motorista do autocarro que me deveria levar até ao Chile, apanho um segundo autocarro para Arica, deixando para trás um país que parece largado ao abandono muito antes do terramoto.
A vida é um ciclo vicioso de destruição dos mais fracos. Investe-se nas cidades, nas empresas e nas pessoas que dão um retorno mais rápido. Os bancos só emprestam a quem tem e, sejamos honestos, os que vivem num contexto sócio-económico mais favorável têm sempre mais oportunidades. Os ricos casam com os ricos e vão viver para o centro da cidade; os pobres casam com os pobres e vão parar à periferia. E assim por diante… não saíamos daqui hoje.
Cada um de nós, no conforto do seu assento-cama com 180º graus de inclinação, pode ou não aceitar este programa e deixar-se ou não alimentar, como se fosse apenas um mero peão, um autómato sem capacidade para “mudar o mundo”. Todos sabemos qual é a opção mais fácil.