No Paine, entrei sem telemóveis, iPods, máquinas fotográficas de alta definição ou conexão internet. Tudo isso pesa muito.
No primeiro dia, estava com o entusiasmo de quem ainda não sabe o que lhe espera. Parti cedo, como fiz depois todos os dias, com um casal de espanhóis de Madrid, que lá deixava ficar para trás depois da primeira hora de caminhada. Eles eram mais lentos que eu mas, como partiram comigo, decidi andar sempre perto deles, mas ao meu ritmo. Os Cuernos del Paine, vi-os nesse primeiro dia, desde a laguna pequena e verde que está por trás. A pedra tem várias cores e os condores sobrevoam os três cuernos. À noite, uma espanhola que estava a dar a volta ao mundo, vinda da Índia, contou-me algumas histórias e adormeci cansada a sonhar com esses lugares.
No segundo dia comecei a refrear os ânimos. O peso da mochila parece que triplicou… dores nas costas, amaldiçoei a tenda individual, o chão duro. Mas sigo, até porque a paisagem não dá muito tempo para queixumes e, a certa altura, o corpo deixa de se sentir a ele mesmo, é peso morto. Caminhei uma média de 7 ou 8 horas diárias, em tramos de subida e descida sucessiva ou em tramos de 11 kms, junto a lagos com praias, no meio da floresta, na montanha. Tive que cruzar um rio caudaloso de águas derretidas do glaciar que via lá em cima, rio forte e rápido, na encosta da montanha. Não havia como não me molhar até às coxas, não tinha outras sapatilhas, a corrente era fortíssima, não podia cair de maneira nenhuma, e não se via onde estavam as melhores pedras para pôr os pés, estavam tapadas pela água turbulenta. Medo e adrenalina. Subi e desci à procura do melhor ponto na margem. Cruzei metade, com os joelhos a tremer; na outra metade, lá vi a mão de um guia de uma expedição a estender-se, e agarrei-a. Cheguei à outra margem, mas com as calças e sapatilhas molhadas… assim só me tinha tido no surf, nas poucas vezes que fiz snowboard e, às vezes, a descer os cerros de bicicleta, em Valparaíso.
Nos últimos dias as pernas falhavam-me e caí algumas vezes de costas. Vi o Valle Francês, como se subíssemos para chegar ao céu, mas acho que foi o glaciar Grey o protagonista. Este glaciar é menos famoso que o Perito Moreno, é mais pequeno, mas a leitura que se tem da extensão superior vai até mais longe que o glaciar argentino.Vi-o primeiro com a luz de fim da tarde, depois de madrugada, às 4 da manhã, fotografei-o quando ainda se via a lua. O encontro estava marcado, era o meu último dia. Quando comecei a caminhar, para voltar, não vi ninguém durante 4 horas de caminho. O Grey, visto de frente e de cima, com as montanhas de neve lá ao fundo, essas rosa-branco (porque o dia ainda estava a nascer, lá ao fundo onde nunca ninguém deve ter estado). A ilha a meio, escura, trava o glaciar.
Despedi-me do Parque Torres del Paine com algumas interrogações na cabeça: se eu soubesse, antecipadamente, o esforço que ia fazer, teria tido coragem para ir? E se eu soubesse aquilo que ia ver, deixaria de o fazer? E se fosse velhinha, como vi alguns, teria ido na mesma? E voltava a fazê-lo, agora? (…) (…) (…) Voltava!
Nunca, em toda a minha vida, fiz um esforço contínuo, durante vários dias, como este. Também nunca esperei tanto tempo para chegar a um lugar, como esperei por este e Punta de Lobos. Parece que a recompensa chega em dobro.
Viajei até Punta Arenas num fim de tarde clássico, com o sol a pôr-se no Estreito de Magalhães às 22h37m deste dia de Janeiro. Por estas bandas, diz-se que se vê o efeito da aurora boreal. Viajei num estado misto de magia e cansaço entre Puerto Natales, com o Parque do Paine ao fundo, e Punta Arenas. O céu era vermelho, rosa, lilás, e não exagero, vi verdes claros. Viajei para o fim, fim temporal (quase intemporal, “atemporal” para mim), fim do espaço-físico-continente.
Pensei, no bus, em expressões fiéis para definir o que vi e o que fiz. Como fiz este sonho e como o explicar aos meus amigos e pais, agora que volto ao “mundo”, à comunicação. Natureza-arte/bela provoca emoção estética. Sou um receptor emocionado e enriquecido.