No sul do Chile pela Carretera Austral

Em Coihaique, recebeu-me a família com quem vinha passar poucos dias, mas acabei por passar o Natal e Ano Novo. A mãe, a Lorena, era o meu contacto. É irmã de um amigo de Valparaíso e ambos conhecem bem o sul do Chile porque o pai era marinheiro e, em pequenos, mudaram de casa várias vezes, para os lugares mais isolados da Patagónia.

Nos primeiros dias, a Lorena levou-me a conhecer tudo, o seu local de trabalho, o aeroporto de Balmaceda, fui incluída no almoço de Natal, com os seus vários colegas, chefe e famílias, numa introdução àquela que é a hospitalidade tão característica chilena, ou melhor, patagónica. O marido da Lorena, o Maurício, é professor de filosofia na escola de Coihaique, têm três filhos: Fernanda e Francisco mais pequenos e Daniela, já adolescente, quem me mostrou Coihaique. Quando cheguei aqui, obviamente ia envergonhada, mas com o tempo familiarizei-me. O lugar e o tipo de vida absorvem, os passeios que me proporcionam aos lagos La Paloma, Elizalde, e Escondido entre outros, a lugares onde não chegaria sem eles (não há bus e passam vários dias sem passar ninguém nestas estradas de terra, não se vê uma única casa) foram a melhor forma de eu me desinibir. Fui incluída na família como mais uma filha, brinquei com os miúdos, com a cadela (que é, por coincidência muito parecida com a minha), comi na cozinha, com forno de ferro e a lenha, as comidas que nos preparam a mim, e ao primo David, depois de subirmos o Cerro Cinchao e descermos com tempestade, um pouco preocupados porque não se via o caminho. Comi “murta” e “calafates”, frutos silvestres que apanhamos do chão. O Maurício conta-me os provérbios: “quem come calafate, volta à Patagónia”. Eu comia tanto sem saber, depois passei a comer mais… “quien se apura en la Patagonia, pierde su tiempo”… a constatação desta verdade tive-a depois; vinha uns dias, depois adiei para depois do Natal, depois adiei para depois do Ano Novo…!

No dia de Natal, o primeiro que passo sem a minha família, sou tratada como os mais pequenos: tenho direito a presentes e fico até com o peso na consciência diante de tanta generosidade. Na mesma noite de Natal, a minha casa em Valparaíso foi assaltada. Roubaram-me o computador e tudo o que lá tinha.

O meu conceito de hospitalidade ganhou outra definição depois desta experiência, e só passado algum tempo pude deduzir algo mais reconfortante, não era sorte nem azar, era o que tinha que ser, mais uma etapa… nem sempre é justo generalizar determinadas situações, dizer que um povo é ou não hospitaleiro, que um lugar é ou não perigoso ou hostil, que as pessoas são ou não educadas. Corremos o risco de “atrofiar a nossa mente”, depois de a termos deixado abrir um pouco os horizontes. Corremos o risco de não tirar partido de uma das riquezas da viagem: desfazer preconceitos. Paradoxalmente, agora sou a defender que, “por generalidade”, o povo chileno é hospitaleiro.

Ouço as histórias do Maurício, que me fala do rock “ochentero” argentino, dos “gaúchos” do sul de América do Sul, das navalhas com as garras de “condor”, me ensina as cortesias ao tomar o “mate”, toca os clássicos chilenos e argentinos na guitarra, fala das boas relações que se têm aqui com a Argentina, conta-me o porquê do bosque queimado (é o resultado das investidas de colonos), enquanto os miúdos tomam banho no Rio Simpson, transparente e gelado. Passeamos pela floresta, o Sr. dos Anéis é uma imitação de cenários assim. Ouço a Lorena, que já viveu em Puerto Montt, Puerto Williams, Chiloé, Punta Arenas, falar-me sobre as comidas típicas, os mitos dos “chilotes”, do “trauco”, o bicho que engravida as mulheres só de as olhar.

Tive a oportunidade de viajar a Cochrane à boleia, deixaram-me, a mim e ao David, a acampar em Puerto Rio Tranquilo, a sensação é essa, tranquilidade. Vemos as cavernas de mármore que existem no lago que está dividido entre os dois países: para o Chile, Lago General Carrera, para a Argentina, Lago Buenos Aires. Passo aqui duas noites a acampar, na margem do lago, juntamo-nos a umas chilenas e a um francês “chilenizado” bem humorados, a quem um vinhito só vem ajudar a aquecer a noite solitária, e a ver as estrelas mais próximas. Trocam-se direcções, e fazem-se projectos para nos voltarmos a encontrar.

Regressamos, pela Carretera, vendo essas mudanças súbitas da cor da água e da terra, as pontes antigas sobre rios caudalosos e rápidos. Esta é a zona da Patagónia que está sobre o risco de ver serem construídas as “represas”, ou seja, as barragens, que tanta energia vêm dar ao País mas não à região propriamente dita. O País, e principalmente a Carretera Austral têm vários placards com imagens a simular esse futuro hipotético, paisagens que antes eram virgens, passariam a ver passar postes e fios de electricidade: “patagonia sin represas”, discutem-se as vantagens e desvantangens a nível político, fala-se em impactos, em conectar a Carretera a Puerto Montt. Esta última ideia mataria aquilo que permite que a Carretera Austral ainda seja tão bonita: o isolamento.

Passamos o ano novo num dia de sol, junto ao Cerro Castillo. O “asado” é de cordeiro, à boa tradição do sul. Contam-se as histórias de antigamente, passeia-se. Já no ano novo, despeço-me desta família que me acolheu, me levou a paisagens incríveis, e marcou a minha forma de viajar e pensar. Vivem semi-isolados, numa região onde o governo apoia que se vá viver para urbanizar território, onde não se pagam impostos, onde os humanos têm uma relação mais estreita com a natureza e animais, e um ambiente mais propício para as crianças crescerem, parecido ao meio rural português. Vieram-me trazer a Puerto Ingeniero Ibañez, onde apanho um novo barco para cruzar a Chile Chico e posteriormente a Los Antiguos, já na Argentina. Despediram-se de mim no pequeno porto, os pequenos perguntavam se ia voltar. Oxalá que sim. Esta família seguiu sempre a comunicar-se comigo, a perguntar por mim, se eu estava bem. Eu segui a recordar a Carretera Austral com saudades.

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