Quando decidi viajar para a Patagónia, já a minha amiga Rafaela tinha voltado para o Brasil, já eu me sentia em casa a viajar no Chile, e já tinha amigos chilenos que me ajudaram a chegar onde cheguei. Comprei um guia chileno (melhor que os Lonely Planet) e tinha algumas referências das viagens do Gonçalo Cadilhe por estas bandas. Levava contactos de pessoas mais “locais”, que me iam ajudar e orientar, pessoas que não conhecia mas que eram familiares de amigos de Valparaíso. E, apesar ter querido que um amigo chileno me acompanhasse, acabei por partir sozinha. Agora vejo que se assim não tivesse sido, esta viagem não teria metade do encanto, não teria gozado tanto, não teria aprendido o que aprendi, e não teria tido a preparação física nem psicológica para as viagens posteriores.
Os motivos que levam a uma viagem são muitos e diferentes: trabalho, férias, necessidade de mudança, de estar sozinho, de estar com gente, ver coisas diferentes, ver coisas iguais, necessidade de sair do nosso meio, necessidade de descobrir novos meios, ou simplesmente necessidade de mover-se, não ficar parado, seguir. Independentemente dos motivos pelos quais partimos, a viagem é, se for realmente uma viagem e não turismo, uma enorme fonte de enriquecimento humano, como diz a Marguerite Yourcenar, e à qual deveríamos ter todos acesso. Falo nisto porque se hoje aconselhasse alguém a viajar á Patagónia dir-lhe-ia para ir sozinho. Se já não se dispõe de uma capacidade física tão boa, então que se vá acompanhado mas, no máximo, em grupos de 3 pessoas.
A Patagónia pede mais silêncio, pede travões ao turismo massificado e de alto luxo, que é sem dúvida o reverso da medalha, que pagamos por aceder a lugares tão inóspitos. Este é o paradoxo de que nos vamos apercebendo, a sorte que temos de chegar a lugares que estão praticamente virgens e, ao mesmo tempo, estarmos a ser actores e contribuintes (até ao falarmos neles) para a sua alteração. Por isto, e porque qualquer coisa que se escreva, que eu escreva, sobre a Patagónia, é pouco para fazer jus ao que ela realmente é, prefiro aconselhar a que se vá sozinho e com tempo. Sozinho ouve-se melhor, sente-se tudo melhor. E há lugares que estão isolados, alguns sem qualquer acesso construído.
Parti para a Patagónia poucos dias antes do Natal e estimava viajar por três semanas mas, como tive a liberdade de poder ir sem limites temporais (estou nas férias “grandes” de cá, no Verão), acabei por ficar um mês e meio, com a mochila. Viajei durante a noite numa camioneta directa de Valparaíso a Puerto Montt, suprimindo todo o Chile continental, onde encontrei uma cidade-porto debaixo de chuva (os níveis de precipitação daqui são comparáveis aos da Amazónia), salmão a preços ridículos (aqui estão as polémicas indústrias salmoneiras chilenas) e praias com amplitudes de marés como eu nunca tinha visto. Na maré vaza fui andar de bicicleta na lama, enterrar-me até aos joelhos.
Estamos no “fim” do Chile. Para cruzar a Chiloé tem que se ir de ferryboat; para ir para a Carretera Austral tem que se cruzar para a Argentina, ou cruzar em barco; para chegar ainda mais a sul, só de barco ou avião, ou andando pela Panamericana Argentina. Um País cortado em dois, ou em várias partes. Antes de me decidir a cruzar para alguma destas partes, visito (a norte) o Lago Llanquihue, Puerto Varas e Frutillar. Vi casas de uma classe económica bem alta, casas de madeira da colonização alemã tão forte nesta região, e às tantas ainda tenho o privilégio de almoçar com vista para os vulcões Cabulco e Osorno, visitar os Spas com vista para os mesmos, o luxo extremo que eu nem sonhei alguma vez ter acesso. Vejo o turista europeu que vem aqui fazer massagens e que facilmente se embebeda na noite de Puerto Varas, mas não é disso que ando à procura.
Viajo de madrugada, no cargueiro que atravessa os Golfos de Ancud e Corcovado. O objectivo é chegar a Puerto Aisén e depois Coihaique, já na Carretera Austral. Desisto do norte da Carretera quando vejo o isolamento que reina em Puerto Chaiten. Em Chaiten está o vulcão que explodiu em Maio de 2008, obrigando à evacuação de uma cidade inteira para as povoações mais próximas. O vulcão ainda deita fumarolas, que chego a ver do barco, contam-me que a cidade está fantasma, coberta das cinzas que chegaram até à Argentina. Desisto do barco que chega a Puerto Natales, desisto do barco que vai aos glaciares da Laguna San Rafael (contam que levam os turistas a tomar champagne com gelos milenares), tudo isto tem preços para turista. A única forma económica de fazer esta travessia é nos barcos da marinha chilena, mas por esta altura não há nenhum que me aceite: é Natal, e os marinheiros levam a casa e família no barco.
Depois de um pôr-do-sol digno de filme, onde vejo a Ilha de Chiloé (a única habitada), o Grupo de Ilhas dos Desertores e vários arquipélagos solitários (e “intocados”) que vão conformando o canal por onde navego, como a pouca comida que tenho, durmo numa liteira num corredor apertado onde estão também várias famílias. Desembarco em Puerto Aisén debaixo de chuva e frio e espero no posto do guarda do porto a camioneta que me levará até Coihaique. Os guardas contam-me o desastre que houve aqui há uns tempos: com as chuvas fortes, um desmoronamento de terras junto a uma fábrica gerou na água uma onda e o efeito tsunami varreu a fábrica… várias pessoas desaparecidas e casas soterradas. Deste tema passamos para a acção do Governo (sentem-se isolados), pergunto opiniões sobre o Governo do Pinochet e Allende, passo duas horas na conversa. São poucos os chilenos que se movem entre o helicóptero e o Spa.