Sim, senhor Ministro
Siem Reap, Cambodja
6 Novembro 2007
Gostava de ficar dois dias em Phnom Penh mas o meu calendário está demasiado apertado. Decido, por isso, deixar-me ficar na guesthouse em que o minibus que fez o último troço da viagem desde Saigão nos deixou (mais um esquema) e comprar logo um bilhete no primeiro autocarro da manhã para Siem Reap, com o principal objectivo de visitar os templos de Angkor.
Fico contente quando chego ao escritório/terminal da companhia e vejo que é um autocarro comum, onde viajam maioritariamente pessoas locais, em vez de um transporte específico para turistas. No andar de baixo, onde normalmente também há assentos, vai a bagagem toda, incluindo instrumentos agrícolas, sacos de farinha e arroz e… duas motas! Os passageiros sobem ao segundo piso e uma “hospedeira” ajuda-os a encontrar o lugar marcado.
No lugar ao lado do meu, já está sentado um homem pouco mais velho que eu, bem vestido, de calças de fato e camisa clara lavada e passada, e uma pasta de documentos estilo profissional. Negócios em Siem Reap? – pergunto-me.
Cumprimento-o, sento-me e em poucos minutos começa a conversa. O meu companheiro de viagem passou os últimos anos fora do país, maioritariamente na Rússia, onde tirou uma licenciatura e um mestrado em Economia e mostra-se profundamente desiludido com o estado em que se encontra o Cambodja. A generalizada circulação do Dólar em vez do Rial, as condições humanas de higiene e saúde, o estado das estradas, a qualidade dos meios de transporte, etc… tudo aquilo que um bom político prometeria resolver num comício de campanha eleitoral.
– No teu país as mulheres são liberais?
– Como assim liberais?
– Quando te aproximas delas, elas falam contigo? Aqui não. Se quiseres conhecer alguma mulher tens que primeiro conhecer a família.
– É mesmo? Então, se eu meter conversa com uma, ela vira-me as costas? Amanhã vou experimentar!
– A ti não sei, talvez não. Como és turista, ela acha que não queres nada de mal. Mas se for eu, não fala comigo. Na Rússia é mais fácil. Lá, as mulheres bebem muita vodka. E assim, fica tudo mais fácil.
Rimo-nos sem demasiada maldade. Homens são homens em qualquer parte do mundo e, quando falha outro tema qualquer, futebol ou mulheres garantem sempre uma boa conversa.
Tenho curiosidade em saber que tipo de trabalho ele pretende e pode fazer agora que está de regresso. Diz-me que tem tido várias propostas de amigos para trabalhar como consultor e economista mas que prefere o que está a fazer agora e que são projectos que não quer abandonar. Conversamos principalmente sobre economia pública e politica internacional e fico ingenuamente surpreendido com o seu nível de conhecimento, claramente muito superior ao meu.
– Tenho um cargo recente no Ministério do Interior e quero seguir esta carreira, quero trabalhar na estruturação do país. Não vou mais para fora, quero aplicar aqui tudo o que aprendi.
– Quem sabe daqui uns anos não vejo nas notícias “novo chefe de governo do Cambodja” e posso dizer: “Eu conheço este gajo! Viajei com ele num autocarro para Siem Reap.”
– Quem sabe – responde-me com um sorriso modesto mas com uma forte determinação no olhar.
Pergunto-lhe se, em termos pessoais, estão a ser difíceis estes primeiros meses de volta a Phnom Penh. Se tem cá família e uma casa para o receber.
– Sim, tenho dois irmãos que vivem na cidade.
– E os teus pais? Vivem numa aldeia?
– Não tenho pais – respondeu-me com um ar mais pesado, desviando o olhar para a janela.
Ao atravessar aquelas estradas e aqueles “campos de morte” (literalmente killing fields), onde quase dois milhões de pessoas foram assassinadas, à porta fechada, sob a bandeira dos ideais de um fanático que sonhava construir “uma sociedade agrícola sem comércio, sem ciência, sem escolas, sem cultura, sem cidades, sem bens pessoais e até quase sem vida privada”, tive a percepção clara que o Chandara era um dos milhares de órfãos do Khmer Vermelho. Viria daí a sua genuína vontade de trabalhar “para o país”?
Á chegada a Siem Reap e por gentileza da guest-house de Phnom Penh, tenho à minha espera um tuk-tuk que tento, sem muito sucesso, evitar a todo o custo. À espera do meu companheiro está uma mulher bonita, de trajes muçulmanos, que ele me apresenta como namorada.
– Vem connosco. Cabemos os três na mota, não há problema.
Mas, com a bagagem, era quase impraticável e não quis sujeita-los a esse esforço.
– Anota o meu número de telemóvel então. Quando estiveres alojado, liga-me para nos encontrarmos no centro ou visitarmos juntos os templos de Angkor.
Passo-lhe o meu caderno de notas para a mão enquanto discuto com o motorista do tuk-tuk que quer levar-me para ver uma guest-house que eu já percebi ser mal localizada, e peço-lhe para escrever.
– OK, combinado. Depois eu ligo.
Nunca cheguei a ligar. Por comodismo, porque me apetecia estar sozinho, para não gastar dinheiro… e por mais mil e uma razões que posso agora inventar. Não liguei, pronto. E visitei os templos sozinho, aborrecido e irritado com a máquina fotográfica nova que, vejam bem o meu azar, já está avariada.
Alguns dias mais tarde, já na Tailândia, vejo de relance uma notícia que passa na televisão do hotel e quase posso jurar que, em segunda linha, logo atrás de alguns senhores com ar importante, vejo o Chandara no meio do que me parece ser um evento ou uma conferência de imprensa.
– Ei, eu conheço aquele gajo! Viajei com ele num autocarro para Siem Reap.
és um super viajante! grande abraço