Saudade
G-Land, Indonésia
19 Outubro 2007
No final da terceira onda, quando remo de volta para o pico, sinto qualquer coisa a bater-me na prancha. Num susto rápido, levanto os pés e bato com os braços na água.
Às vezes, particularmente quando estou em sítios que não conheço bem, assusto-me até com o strep que se enrola no pé ou com pequenas algas que se colam ao corpo. Outras vezes, quando vejo um set grande a entrar desde lá de fora, imagino que pode ser um tsunami. Não é uma hipótese disparatada estando aqui na Indonésia. Enfim… como não tenho mais nada com que me preocupar, arranjo estas palermices.
Já sentado na prancha, meto a cabeça dentro de água e abro os olhos para tentar ver alguma coisa. Nada, “tubarão não deve ser”. Nessa manhã, tinha sido picado por uma alforreca e um espanhol, que acabara de conhecer, viu-me com o pé fora de água.
– Que paso? Reef?
– Não. Acho que alguma coisa me mordeu. Sinto a picar muito.
– Medusa! Jellyfish, you now?
– Pois, se calhar foi. E isto passa rápido?
– Si, un o dos dias. Bueno, depende da la medusa!
E continua e remar, a rir-se, em direcção ao outside.
E agora isto, seja lá o que for. Mas, volta e meia, lá sinto a bater por baixo da prancha “toc, toc”. De repente dá-me o click. Viro a prancha ao contrário e (agora parece-me óbvio) tenho uma das quilhas solta, quase a sair.
É o meu último dia em G-land. É a última surfada do dia e, quase de certeza, a última surfada na Indonésia, que será também a última antes do jejum de trinta e muitos dias que se aproxima, enquanto viajo pelo sudoeste asiático. Apesar do cansaço, estava com vontade de aproveitar a luz do dia até à última e, na verdade, a quilha solta não atrapalha assim tanto. O pior é mesmo perdê-la, se continuar a surfar e acabar por se soltar.
Mas depois vem-me mais uma ideia daquelas estranhas à cabeça. E se isto tudo é um sinal? No total, já levo 7 dias de G-land. Isso é qualquer coisa como 10 ou 12 surfadas. Mais ou menos 50 ou 60 ondas boas. E se “alguém” me está a querer dizer que já tenho a minha conta, que, a partir de agora, só vai piorar? Primeiro a medusa. Agora a quilha a soltar-se. Isso são avisos? O que é que se segue? Um espalho no reef?
Olho à minha volta. De um lado, vejo os brasileiros que chegaram ontem, e com quem tive a primeira discussão dentro de água em 6 meses de viagem, a disputar o pico como se fosse o último prato de comida que os seus pobres espíritos têm para se alimentar nos próximos dias. Do outro, vejo a selva cerrada, onde apenas se destaca a torre de observação.
Sim, já tive a minha conta. Despeço-me do Bob, um Havaiano que está alojado noutro surf-camp mas que surfa muitas vezes na mesma secção que eu e, por isso, acabamos por puxar sempre um pelo outro. Apanho uma última onda para sair e fico a ver os outros até o sol se pôr.
Este pode não ser o mais bem arranjado dos três campos que existem (é o mais barato), mas dizem que a comida é a melhor e, tenho a certeza, não fica atrás dos outros em termos de pessoas. Ao fim do primeiro dia, todo o staff sabe o nome dos 20-30 hóspedes, um por um, e atendem-nos com uma simpatia e um carinho que nos fazem sentir entre família.
No dia seguinte, antes de entrar para a carrinha que faz a penosa viagem de regresso a Bali, um dos empregados põe-me a mão no ombro, como quem dá um abraço de despedida, e pergunta-me com uma cara triste e num português quase perfeito.
– André… saudade?