Em tempos em que a “globalização” e “sustentabilidade” estão nas bocas do mundo, um professor encarregou-me de ler e pensar sobre o que é isso. A globalização traduz-se no mundo cada vez mais “conectado” (por redes informáticas, de transporte, económicas), com tendência para que as sociedades adoptem hábitos semelhantes, as cidades se pareçam umas com as outras, genéricas, com bairros periféricos, e os “não lugares” de Marc Augé. De outra perspectiva, a globalização dá aos humanos melhores condições de vida, ao acederem a bens que não teriam sem as redes globais: um computador, um carro. Traz riscos e oportunidades.
Pela primeira vez na história mundial, em 2009 a população urbana ultrapassou a rural (os povos movem-se para as cidades) mas, simultaneamente, algumas cidades despovoam-se, como o Porto e Valparaíso. A ONU explicou que a sustentabilidade futura passa por comunidades locais mais “auto-suficientes”, conseguindo o “local empowerment”, tornando-se capazes de produzir grande parte do que consomem, alimentos ou ar puro. Os críticos internacionais, dizem que se devem “maximizar as oportunidades” da globalização e “minimizar os seus riscos” (os impactos negativos).
Tudo isto está ligado à ideia de “identidade”, o que nos distingue cultural, natural e socialmente, e possibilita que a Terra seja “bio-diversa”. A língua, arquitectura, espécies e paisagens naturais, são exemplos das diferenças identitárias. A globalização ameaça-as. A mobilidade crescente, o turismo, permitiu que as pessoas chegassem a lugares únicos, com marcas identitárias fortes, instalando-se, e por vezes, anulando aquilo que as atraiu. Na evolução das espécies, a extinção (e o surgimento de espécies novas) faz parte dos ciclos normais, “naturais” dos ecossistemas. A “reciclagem” entre culturas também as substituiu lentamente – há menos budistas, os muçulmanos espalham-se. O problema é que agora, tudo muda mais rápido.
Tenho que projectar um parque “eco-cultural” (com biblioteca, museu, quinta biológica, etc) em Laguna Verde, um terreno a sul de Valparaíso. São vários hectares declarados Santuário da Natureza, uma escarpa sobre o mar, que foi usada como lixeira pelos habitantes de Valparaíso, mas a imponência natural ainda sobrevive.
A cidade de Valparaíso tem muitas carências: despovoamento (para a vizinha Viña del Mar), falta de classe média-alta, altas taxas de desemprego, delinquência, miséria e, pior de tudo, faltam recursos. Mas “identidade” têm-na, e muito enraizada (o calão, os mitos porteños contados nas tabernas, a vida de bairro, a hospitalidade, a arquitectura comprovam-no). Talvez por isso, seja complicado suscitar o interesse cidadão por um parque urbano, onde se gastarão recursos que não dão grandes lucros. A cultura urbano-portuária é tão forte que é difícil ver as vantagens de um espaço verde. Aparentemente, ele não resolverá os problemas económicos e sociais.
O Chile, apesar de colonizado, manteve intactas grandes extensões de natureza. Com a urbanização do território e mundialização dos modos de vida (dos “green”, “light”, “eco”e “bio”), pensa-se sobre o “verde” que vai sobrando, para onde se expandirão as cidades, onde vão brincar as crianças, etc. Diz-se que um dia Santiago e Valparaíso se vão fundir. Torço para que não se cometam erros semelhantes aos de Portugal, que foi tão edificado, que a oferta de habitação é superior à procura, dando para alojar todos os sem abrigo do País. Quem pagou foi a paisagem.
Actualmente, os que melhor utilizam este terreno são um casal de hippies argentinos, que vivem numa tenda com cães e vista desimpedida sobre o mar. Avistam-se (cada vez menos) as baleias passar ao largo, no Inverno. Antigamente, as baleias eram capturadas e mortas numa “ballenera” aqui perto, em Quintay, hoje uma aldeia piscatória com as ruínas do edifício sangrento. Dizem que a cor que se vê no chão não é do ferro oxidado, mas sim sangue das baleias.
A noroeste, no mar, está o Arquipélago Juan Fernandez, ao qual pertencem as ilhas Alejandro Selkrik e Robinson Crusoe (a única habitada, com 700 pessoas). Em 1709, Selkrik, um náufrago trazido por uma tripulação de piratas, chegou a Valparaíso. Tinha sido abandonado nas ilhas 4 anos antes e inspirou Daniel Dofoe a escrever, 10 anos depois, “As aventuras de Robinson Crusoe”. Melville também ouviu, em 1800, relatos dos cachalotes brancos que navegavam a costa chilena. Deles nasceu “Moby Dick”. Soube estas histórias neste lugar de identidade marinha, no qual me fui enraizando, porque também me identifico com ele. (Se me re-identifico em identidades que não são a minha, se é que isso existe, provavelmente estou a usufruir da globalização…).
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.