Enfrentámos os primeiros metros numa subida forte mas curta e, ao som do meu Mini Disc, cheguei sem qualquer dificuldade ao primeiro lugar de descanso. Recolhi um pouco de água, coloquei uma pastilha purificadora no cantil e, passado algum tempo, bebi. Não tive problemas. Os chilenos não se estavam a habituar à altitude e estavam com algumas dificuldades. Estávamos a 3000 metros e eles não tinham feito qualquer habituação. Eu tinha estado antes no Colca Canyon.
O alemão suava por todos os lados mas não tirava o seu casaco de malha que deixava apenas adivinhar uma camisa axadrezada que ficava impecavelmente no conjunto e que até condizia com a mochila. Os peruanos, com mais idade, percorriam o caminho muito lentamente mas com muito boa disposição. Eu, sentia-me bem e com vontade de andar mais um pouco. Entre fotografias e umas tantas músicas percorri os poucos quilómetros ate Wayllabamba. Cruzei-me com uns tantos burros a carregar material que sempre enfrentei pelo lado de dentro do caminho. Tinha aprendido esta técnica com os iaques dos Himalaias: sempre que ao caminhar nos cruzamos com um animal o melhor é colocarmo-nos do lado de dentro da encosta. Passei as ruínas da povoação Inca de Patallacta e fiquei impressionado com a riqueza do local.
Os carregadores tinham passado por nós com as suas sandálias calçadas e com grandes sacos nas costas a correr. O único que tinha sapatos era o Inka, o “meu” carregador. Andava com uns sapatos de vela que se revelaram bastante confortáveis para os seus pés. Pelo menos não o ouvi queixar-se do princípio ao fim da viagem. Carregavam 25 kgs sendo 20 de material e 5 dedicados ao seu equipamento individual. Tínhamos almoçado cedo para que eles se pudessem libertar de algum peso e passarem o posto de controlo sem dificuldade. Todo o material era pesado e, no máximo, cada um levava rigorosamente 25kgs. Senão, não passava. Passaram com bastante velocidade e quando cheguei ao local de pernoita já estavam a preparar o jantar com a mesa do lanche posta. Ainda ajudei a montar algumas das tendas, arrumei as minhas coisas, troquei de roupa e agasalhei-me. Estávamos a 3000 metros de altitude.
Jantámos truta, conversámos um bocado, acordei os últimos pormenores com o Inka para o dia seguinte e fomo-nos deitar. Deviam ser para aí umas 20h quando me deitei. Estava sozinho numa tenda. No dia seguinte seria o único a acordar às 5h para caminhar 10h com o Inka. Ele carregaria a tenda e a comida. Eu levaria o meu material individual. Pareceu-me injusto mas não consegui demovê-lo da sua convicção. Ainda estive um pouco na cozinha na conversa com eles e deitei-me sob um céu nublado que parecia augurar alguma chuva num futuro próximo.
Acordei cedo. Victoriano tinha preparado alguma comida para os dois dias e parti com Inka e com Júlio que ia para o local do acampamento começar a preparar as coisas. Júlio era extremamente falador, mais fraco fisicamente que Inka embora fosse um pouco mais velho. Tinha 22 anos. Falavam quechua entre eles quando queriam que eu não percebesse. Partilhei as minhas folhas de coca e aprendi com eles a técnica para as mascar. Ofereci-lhes uma maçã. Inka primeiro recusou intimidado. Júlio aceitou sem cerimónias. Logo a seguir Inka não hesitou em aceitar a dele de volta! Ofereci-lhes chocolates e pausadamente efectuamos a subida até ao ponto mais alto do caminho a 4200 metros de altitude. Warmiwanusca apresentou-se fria e nublada. Muitos turistas estavam a esta hora no caminho. O topo estava cheio deles a tirar fotografias. Os guias comunicavam entre eles com apitos e a fazer sons parecidos com os dos animais. O vale tinha uma excelente acústica. Descansámos um pouco, bebemos água e comemos mais uns doces.
Lá mesmo em baixo, era o local de acampamento onde abandonaria Júlio e começaria a caminhar sozinho com Inka. Chegámos a Paqamayu, a 3500 metros de altitude, em pouco tempo. Ocupámos o espaço destinado para o acampamento da nossa expedição. Eram 10h30 e Inka abriu um banco para eu me sentar. Obviamente recusei e pedi-lhe que guardasse o banco e não o utilizasse mais até ao final. Pegou num bocado de papaia e uma banana e começou a cortar em pequenos cubos para dentro de uma tigela. Era o meu segundo pequeno-almoço que estava, mais uma vez, a ser rigorosamente preparado. Pedi-lhe que parasse e comi a fruta inteira. Disse-lhe que ele não era meu escravo mas ele não abandonou a ideia até ao final de que eu pagava e ele recebia. Ficamos por lá uma hora. Abasteci-me de água e parti à frente rumo as ruínas de Runkuraqay. Júlio ainda insistiu em me acompanhar sem o material. Recusei e disse que iria bem sozinho. O trilho era fácil e ele não era meu empregado. Despedi-me com um abraço e com algumas palavras em quechua que tinha aprendido com ele. Deixei-lhe um pouco de coca e continuei o meu caminho. Ele tinha-me ensinado a dizer as duas palavras mais importantes para quem caminha por estes lados: “samasio”, que significa “descanso” e “jaco”, que significa “vamos”!
Era a última subida do caminho. O resto era sempre a descer. Cheguei e parei para tirar algumas fotos do vale. Inka chegou logo a seguir com ar de quem não estava nada cansado. Subimos mais um pouco e chegamos a um local onde de manhã se podem ver veados. Não estavam lá. Já estávamos quase na hora do almoço. Segundo as previsões de Inka chegaríamos ao destino por volta das 16h30. A descida surgiu extremamente íngreme. Em todos os planaltos existiam acampamentos de expedições de luxo. Água por todo o lado. Pássaros de variadas cores e com fabulosos cantos acompanhavam o nosso passo ritmado. A vegetação começava a tornar-se menos agreste e mais tropical. Estávamos a entrar na zona da floresta. Havia orquídeas por todos os lados de variadíssimas cores e feitios. O espectáculo era fantástico e infelizmente eu não poderia parar muito tempo para o contemplar. Tinha um caminho a percorrer num tempo limitado. O caminho, de pedra, era extremamente duro de percorrer. Desnivelado e com longas escadarias que maltratavam os pés, canelas e joelhos. Não parava. Estava com os músculos quentes e sentia-me bem para andar. Aqui e ali pequenos descansos curtos. Cruzámos as ruínas de Qonchamarca e Phuypatamarca. Nestas segundas paramos para almoçar. Arroz com frango. Frio, claro. Inka não transportava com ele um fogão. Abriu a caixa, serviu-me e comemos os dois deitados no chão.