O ar e a luz são mais limpos no lago de Titicaca. Entre o Peru e a Bolívia, a 3.800 metros acima do nível do mar, é o ponto mais baixo do altiplano. As várias ilhas têm diferentes comunidades relativamente intactas graças ao esquecimento e isolamento geográfico. Os habitantes raras vezes saem das ilhas, mas recebem curiosos de todo o mundo. Juntei-me de novo a viajantes chilenas. Recomendaram-nos que aprendamos algumas palavras no idioma local (Aymara ou Quechua) e que levemos alimentos como forma de ajudar e agradecer a quem nos vai acolher. Nas ilhas não há hotéis, nem pensões. Ainda bem.
No passado, o povo dos Uros desenvolveu um refúgio para evitar conflitos com os Incas: as “Islas Flotantes”, e aqui permaneceram despercebidos. E quando havia disputas entre os próprios Uros, dividiam as ilhas em 2 ou 3 partes. A “totora”, o junco que pode chegar até aos 15 m de altura, serviu como material construtivo de quase tudo: casas, hospital, escola e a base das ilhas (suporte das casas). As ilhas seguram-se, presas em vários pontos com cordéis a fundações (de estacas e blocos de terra) submersas até 2 metros de profundidade. Isso permite-lhes flutuar, como se fossem uma grande jangada. O chão é feito com duas camadas de totora perpendiculares e, por cima, estão os “edifícios”. Foi relaxante andar num chão que se afundava quando o pisávamos. A totora traz mais vantagens terapêuticas: limpa a água, filtrando-a, situação muito favorável quando não existe rede de água potável e rede de saneamento.
Os descendentes dos Uros subsistem da pesca da truta e alguma agricultura. Em vez de usarem o dinheiro, trocam. A rotina aparece ilustrada (bordada) nos tecidos coloridos que os habitantes se esforçam por vender. Existem algumas televisões e rádios por cada cabana de agregado familiar, funcionam a energia captada por painéis solares. Felizmente, o “subdesenvolvimento” tem destas situações felizes, que servem (ou deviam ter servido) para o desenvolvido replicar.
Desembarcámos na ilha de Amantini. Faz parte do circuito dos guias e turistas como lugar para pernoitar. Só que as condições de vida desta gente são tudo menos turísticas: os melhores quartos que têm em casa são para os visitantes, são os únicos com estuque pintado e janelas. O resto da casa não é assim, não tem camas para todos. O quarto de banho é de 2 metros quadrados, em adobe, fora de casa, com um buraco central no chão. Não há esgotos (só uns canais de escoamento), não há pavimentos ou luz.
A família que nos acolhe corresponde aos pais e 7 filhos, entre eles a Soledad, que nos guia até ao cimo do cerro. Com ela cumprimos o ritual: subimos no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, para vermos a vista sobre o lago em silêncio, junto ao cemitério. No cume, o frio “envivece” e a paisagem aquece a alma. Ao jantar, tentámos saber mais sobre família e “arranhámos” algumas palavras Aymara. Comemos a comida que eles comem, de alimentos seculares e locais: quinoa – o “arroz dos Andes”, papa (a batata é originária do Titicaca, foi “importada” para o resto do continente e do mundo), camote (batata doce), com chá de muña (erva local muito aromática, boa para a altitude). Os pais da Soledad encarregaram-na de nos vestir para o baile popular nocturno. Tornou-se típico levar turistas aos folclores locais. As mulheres dançam com saias rodadas coloridas, camisa bordada com flores e manto preto, os homens de “poncho” e “sombrero”. Os turistas tentam aprender as danças locais, ouvem a música das quenas (flautas de canas) e Wakanas (tambores). Mas não perdem a vergonha de dançar. Estas comemorações celebram datas do calendário agrícola, são produto da fusão de mitos pré-hispânicos e cristãos. A Soledad guia-nos na volta, não saberíamos retornar sem um único foco de luz além das estrelas.
Às 5 da madrugada, tomámos o pequeno almoço, de novo – quinoa, queijo de cabra e chá de muña, mas com panquecas caseiras. Eles têm que trabalhar e nós temos que seguir viagem. Despedimo-nos. Entre nós há, em simultâneo, um desfasamento cultural e uma proximidade inexplicável que ajudam ao silêncio. Deixámos a comida que trazíamos para oferecer, dei roupa para o frio. Eles precisavam mais dela que eu, e felizmente não ia necessitar dela nos próximos pontos da viagem.
Na ilha de Taquille não se discutem os preços dos produtos que se compram, estão estipulados e o lucro é dividido por todos os habitantes da aldeia. Há um código de vestuário e procedimentos que rege a comunidade. Só existem três dias no ano em que as mulheres podem escolher o noivo, indicando-o com a cor do pompom que usam no dia de festa. O homem responder-lhes-á se está solteiro e interessado (ou não) através da posição do seu gorro. Se assumirem um compromisso, passam três anos de vida em comum, à experiência. Se ao fim dos três anos, quiserem separar-se podem-no fazer livremente, mas, se optarem por casar, assumi-lo-ão para toda a vida. Os pais preocupam-se mais em casar os últimos filhos, já que estes asseguram a passagem da tradição até mais tarde. O casamento dura 7 dias e todos os convidados trazem os “comes e bebes”. Não se sabe o sexo dos filhos até que nasçam. Se for menina, o pai baptiza-a e tece-lhe a roupa. Se for rapaz, cabe à mãe fazer o mesmo. Os homens também fazem a roupa para as respectivas mulheres, e as famílias identificam-se por uma cor. As cores e posições das faixas na cintura servem para informar sobre o luto ou tristeza entre os adultos, escusando-se perguntas desagradáveis. Um sistema sócio-cultural complexo.
Durante anos isoladas pela “soledad”, estas comunidades criaram “regras” que lhes garantem uma certa paz e estabilidade no tempo.
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.