“Would anyone believe what I have found?”
O calor e a humidade associaram-se à ansiedade. Entranharam-se em nós à medida que avançámos para Machu Picchu e havia uma espécie de nervosismo, comum a todas, no comboio que leva a Aguas Calientes. Elas são chilenas, adolescentes, mais novas que eu, e estavam de férias. Viajei com elas algumas partes no Peru. Queriam saber porque viajava sozinha, onde tinha estado, como é a Europa, o surf, etc. Tornei-me na “prima mais velha”, que observava a excitação delas, e ao mesmo tempo a partilhava mais comedida. Quando tinha a idade delas já sonhava em vir aqui.
Aguas Calientes serve de base para descansar antes da ascensão a Machu Picchu. Mas não dormimos. Começámos a subir às 3h da madrugada, queríamos fazê-lo a pé, subir Wayna Picchu, a “montanha jovem”, o “cone” que faz o fundo dos postais. Já Machu Picchu, a “montanha anciã”, é uma montanha que está do outro lado das ruínas, e que lhes deu o nome.
A região de Machu Picchu está no limite da selva e o clima semitropical prega partidas. Partimos entre descargas de chuveiros torrenciais e céu com estrelas. Os sentidos ficaram mais despertos graças à noite e à total escuridão circundante. O cheiro da terra, os sons, as poucas cores (sombras) que conseguíamos captar a menos de 2 metros, intensificaram-se. Vê-se com o corpo, é difícil de explicar. O caminho que subimos cortava o zig-zag usado pelos carros e a floresta, totalmente enlameada.
Apesar do mistério acerca da edificação e abandono do lugar, sabe-se que, antes da sua (re)descoberta por Hiram Bingham em 1911, viviam duas famílias campesinas na parte baixa das ruínas. O investigador norte-americano, que inicialmente estudava as rotas de libertação de Simón Bolívar, começou a interessar-se pela cultura Inca e a procurar as ruínas de Vilcabamba (que se localizam mais para o interior da selva). Tendo ouvido relatos de ruínas aqui, seguiu o Camino del Inca (onde também descobriu mais vestígios). Com dificuldades chegou à parte oeste do complexo e aí foi guiado por uma criança local até ao centro da que apelidou “cidade perdida dos Incas”, não a que ele esperava encontrar, mas mais estupenda.
No diário, escreveu “Would anyone believe what I have found?”. A cidade dessa época não estava desflorestada e sim cheia de cobras, as ruínas mais “arruinadas” e escondidas pela vegetação. Com as expedições seguintes, apoiadas pela universidade de Yale e a National Geographic, divulgaram-se imagens, depois abriram-se caminhos, linha de comboio, reconstruíram-se algumas ruínas, passaram a Património Mundial (1983), abriram-se ao público (2001), e, apesar dos conselhos da Unesco para o máximo de 500 turistas diários, entram mais de 1000. As ruínas deslizam vários centímetros anualmente, perderam parte da floresta virgem que as segurava, e o turismo excessivo (lucrativo) encurta a “vida” deste lugar. A pressão dos veículos que sobem a montanha, de turistas que pisam muros (alguns até os graffitam) é evidente. Fala-se na construção de um teleférico. A “cidade perdida” é cada vez mais encontrada e perdida.
Primeiro apareceram cerca de 100 esqueletos de mulheres, depois os dos homens, objectos rituais em prata, cobre, bronze e pedra. Existem zonas urbanas, cerimoniais e agrícolas, e o palácio rural, templos, prisão, banhos, e observatório astronómico. Distinguem-se os eixos claramente traçados, algumas construções alinham-se com o azimute nos solstícios. As hipóteses continuam por comprovar: a cidade foi o reduto final dos Incas durante a colonização? Ou foi abandonada por eles diante de alguma ameaça, inclusive espanhola? Nenhum colonizador espanhol a relatou.
As fotografias que vi das ruínas eram redutoras ao lado do que vejo aqui. Com imagens não percebi a escala do lugar (que parece menor em imagens), a imponência do espaço, a relação do construído e natural. Wayna Pichu é tão dominante como a parte edificada. Como um trono, lá em cima dá vertigens e calma. Tem um perfil curvilíneo e depois cai num abismo. As montanhas da Cordilheira de Vilcanota escondem-se atrás do nevoeiro, e ambos perdem a tridimensionalidade, reproduzidos num plano de uma imagem. A vegetação é luxuriante, quase artificial, aos olhos parece de uma textura feita de pompons, esponjosa. Em fotografias não se lê o vazio que existe até lá em baixo, onde serpenteia o Urubamba e o comboio paralelo que termina em Aguas Calientes para os turistas, mas segue para uma hidroeléctrica. Quando não ecoa pelo vale acima, consegue-se ouvir o Urubamba no fundo. É um veio de água que se une com outros, gera um veio maior -o Ucayali – e desse e outros veios nasce o Amazonas.
O cansaço da subida compensou, durante, antes e depois de subir: sentei-me na “montanha jovem”, esperei, passaram a chuva e as nuvens, saiu o sol. Sequei o bilhete de entrada para recordação, escrevi a data no desenho ensopado, e fiquei a ver. Parti para a América do Sul no dia 24 de Julho e subi aqui precisamente 365 dias depois (com atrasos, imprevistos e greves de transportes pelo caminho). Mais tarde, vim a descobrir que foi também num 24 de Julho que Bingham viu Machu Picchu pela primeira vez.
Would anyone believe?
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.