Linha amarela
David, Panamá
26 Julho 2007
Atravessar uma fronteira a pé fazia parte do meu imaginário. Gosto de ver filmes e documentários passados com histórias de travessias e sempre achei curiosas as deslocações das pessoas que vivem em povoações fronteiriças, que muitas vezes trabalham num país e dormem no outro. Mais tarde, comecei a interessar-me pelos clandestinos e os tormentos que passam a tentar entrar noutros países em busca de uma oportunidade, por muito remota que seja. Para nós, meninos da cidade, ir a Vigo comprar caramelos já era uma grande aventura!
Nestes últimos meses três meses, passar fronteiras a pé fez parte do meu dia-a-dia, mas esta dá-me um prazer particular. Por um lado, porque a chegada do passaporte para poder fazê-lo foi sofrida; por outro, porque pela primeira vez não apanho um transporte transfronteiriço, isto é, um mesmo autocarro que me leve de uma cidade da Costa Rica até uma cidade do Panamá.
Consigo apanhar uma boleia para sair de Pavones em vez de ter que esperar pelo autocarro das 12:30, que pára em frente ao campo de futebol, e nem tenho oportunidade de me despedir decentemente do Diogo. De Conte, a povoação onde me deixa a minha boleia, tenho que apanhar um autocarro até Laurel e daí um táxi até Canoas, onde fica a fronteira. Mas faltam mais de duas horas para o autocarro e tenho a sorte de chegar um táxi que traz passageiros de Laurel. Ora, isto é uma excelente oportunidade de negócio, daquelas win-win. Ganha ele porque não regressa com o táxi vazio e ganho eu porque ele pode fazer-me um preço especial. Acordamos um valor e seguimos viagem.
O meu taxista é um jovem simpático, culto e educado. É bacharel numa área de humanísticas e vamos a viagem toda a conversar sobre futebol, sobre o Mourinho, a Copa América, a qualificação para o Mundial e sobre aquela vez que a Costa Rica ganhou a Portugal (fiz de conta que não me lembrava). Também sobre política e o pacto económico com os EUA que a Costa Rica vai levar a referendo, sobre a história da Costa Rica e do herói nacional Juan Santamaria… e muito mais. Passamos por uma patrulha da OIJ (Organismo de Investigação Judicial), a PJ cá do sítio (ou FBI como eles gostam de dizer) que eu já conheço tão bem, parada em cima de uma ponte. Aparentemente, estão à espera de droga colombiana vinda através do Panamá e ele aponta-me as casas e fazendas dos barões.
– Importas-te de dar boleia a esta rapariga? É a minha mulher! – pergunta-me a sorrir.
A rapariga acomoda-se no banco da frente, praticamente debaixo das minhas pranchas e ele apresenta-me como “un amigo”. Gosto de os ouvir falar das coisas banais do dia-a-dia, tão distante do que estou a viver durante estes meses, como se fosse uma chamada à realidade.
– Vais almoçar a casa?
– Não, hoje não posso. Depois passo na minha mãe e como lá qualquer coisa. Onde queres ficar? No banco?
Eu também quero ir ao banco para trocar dinheiro a evitar os cambiadores na fronteira. Pago-lhe os 8 dólares combinados e despedimo-nos com um aperto de mão, satisfeitos com a hora e meia de conversa e troca de ideias que este momento em que as nossas vidas se cruzaram permitiu. Recuso qualquer ajuda de taxistas, transportadores, guias, cambiadores e todos os “aspirantes a ajudantes de aprendizes”, como se soubesse exactamente o que fazer no meio daquele movimento caótico. Ás vezes surpreendo-me com a minha própria ousadia face ao desconhecido.
A menina do lado da Costa Rica desconfia do meu novo passaporte temporário, uma obra de fazer inveja a qualquer falsificador de meia tijela e ainda sem carimbos.
– O que aconteceu ao passaporte anterior? Roubado? Tem aí a denúncia à polícia? Em que data entrou no país?
Do lado do Panamá, um senhor de poucos sorrisos pede-me para lhe mostrar, como prova de solvência financeira, 500 dólares em dinheiro.
– Mas como? Acabo de entrar no país, acha que carrego 500 dólares em dinheiro?
Mostro-lhe os 120 dólares que acabei de trocar, o cartão de crédito e o computador portátil. Parece satisfeito.
– E o bilhete de saída do país?
– Mas eu ainda não sei exactamente quando vou sair. Roubaram-me os bilhetes e vou comprar outro pela Internet. O carimbo não dá para 30 dias? Então, não se preocupe que eu saio antes. Até posso regressar à Costa Rica e voltar a passar a pé.
No meio disto tudo, tenho a nítida impressão que se não fosse à casota mostrar o passaporte e dizer “hola”, ninguém me dizia nada e eu simplesmente caminhava pelo país adentro. Mas enfim, também são estas contradições que fazem da América Latina, que Ernesto Guevara chamou, antes de se tornar o Che, de “a grande América unificada”, um pedaço de terra divertido de viajar. Mas noutras coisas, não falha… e, tal como estava à espera, lá está do outro lado da linha amarela um autocarro para David, a cidade mais próxima, à espera dos clientes. Entrego as pranchas e a mala ao cobrador, vou buscar qualquer coisa para comer e em poucos minutos já estou a seguir viagem.
Fácil, fácil. Tão fácil que chega a ser monótono. Isto de passar fronteiras já não é o que era! ;)