Gentes e locais
Barra de la Cruz, México
8 Maio 2007
A Cilinha era uma senhora que tinha um pequeno café ali na praia de Matosinhos. Durante alguns anos, enquanto não tínhamos carro, deixávamos as nossas coisas no café da Cilinha quando íamos para dentro de água. Roupa e calçado dentro das mochilas, mochilas dentro das capas das pranchas e aí íamos nós! Tinha uns rissóis de carne fantásticos e uma boa vontade impagável para com os miúdos surfistas que, apesar de lhe molharem o chão, eram os seus principais e, a determinada altura, quase únicos clientes. Havia um caderno onde era registado o consumo de cada um para ser pago no fim do mês. Nunca tive número nesse caderno nem nunca fiquei a dever nada mas estimo que deve ter levado vários calotes. Creio que não era pelo dinheiro que o fazia.
A Cilinha morreu há já vários anos. O café, com o mesmo nome, morreu também logo a seguir e alguém (não tenho a certeza quem mas acho que foi o Godzilla) teve a bonita atitude de organizar um campeonato de amigos em sua memória. “Memorial Cilinha” chamou-lhe. Hoje, no seu lugar, está um calçadão com oito metros de largura que não deixa ver as ondas quando se passa de carro, uma rede rede pendurada por quatro pilares que lembram as chaminés da Petrogal, um edifico “transparente” vazio e meia dúzia de barracas de gelados e cachorros.
No Don Leo, em Barra de la Cruz, também há um livro de fiado. Cada novo cliente escreve o seu nome no canto superior esquerdo de uma página em branco e a partir daí vai, ele próprio, registando os seus consumos.
– Don Leo, quanto? – e regista-se.
É preciso ficar a dormir numa das escassas e modestas acomodações existentes na Barra para conseguir perceber minimamente onde se está. Para muitos, que diariamente fazem a meia hora de estrada desde os seus hotéis de luxo em Huatulco, a Barra nunca será mais do que a onda que o WCT de 2006 “Somewhere in México” revelou ao mundo.
Chego no dia da Senhora de la Cruz, a festa anual da aldeia. Está uma corda pendurada a atravessar a estrada de terra com várias pequenas argolas de porta-chaves penduradas por fitas vermelhas. Os homens vêm desde o final da rua, montados nos seus cavalos, e, ao passar pela corda, tentam arrancar uma argola introduzindo-lhe o utensílio que trazem numa das mãos. Uns usam canetas, outros usam chaves de fendas ou pregos. Os vencedores recebem um prémio simbólico, um beijinho de uma das muchachas e, claro está, um grande aplauso da multidão incendiada por cerveja Sol e tacos picantes! A cena repete-se várias vezes, até não restarem argolas penduradas na corda.
A onda em si, a tal que a ASP chamou de “La Jolla”, é muito boa. Muito parecida, em vários aspectos, com o Casino ou os Cagalhotos, em Espinho, mas com água quente e um cenário envolvente que dá vontade de abraçar. Deve ser o secret-spot com mais crowd do mundo, pois facilmente se contam 30 surfistas dentro de água durante todo o dia!
Fico três dias, apenas três dias. Porque conforme me escreveu por e-mail um amigo de um amigo “Volta ao mundo em 8 meses? Vai ser uma corridinha.” Apanho boleias para ir e regressar da praia ou percorro esse quilómetro a pé, já de noite, com o Delfim e um miúdo local. Janto na pizzaria e converso demoradamente com o Carlos e com um outro local completamente “pedo”. Preencho a minha folha na mercearia do Don Leo, onde também fico a dormir. Tiro fotos e faço pequenos filmes ao surf, durmo nas redes da palapa entre as surfadas, leio, penso no que vou escrever sobe este sítio, cumprimento e falo com muita gente de todos os cantos do mundo.
A onda não é tudo. É preciso ficar lá.