Cheguei ao terminal de Cusco quando o dia nascia. Passei horas em viagem, perdi noção do tempo entre fronteiras, câmbios, terminais, autocarros, gente, paisagens, turistas europeus, chilenos, ofertas para comprar droga, cheiros a comida, dores nas costas, música e vendedores de camioneta. E ansiedade por chegar. Não é só por chegar: ninguém me obrigou a andar tão rápido e tantos quilómetros de uma só vez, mas nunca fui tão livre como este ano para decidir a sequência dos lugares a ver e quanto tempo estar em cada um. A minha ânsia tem outras razões. Tem anos de espera, de projecções, de vontade, de imagens mentais sobre a América do Sul e, uma vez aqui, sobre Machu Pichu. Fui influenciada pela informação visual que promove este lugar no mundo. Tinha que o ver, sob o risco de não ter tempo para lugares peruanos bonitos e menos turísticos, como a selva amazónica ou as ondas do norte. Defini prioridades.
Depois de reduzir o preço do táxi, fui com a Sra. Maria, uma cusqueña, para o centro. Havia estrangeiros bêbados da noite que terminava na Plaza de Armas, algumas europeias nórdicas de mini-saia, apesar do frio seco. Nas primeiras horas do dia a Sra. Maria orientou-me: ajudou-me a procurar um hostal bom e barato, explicou-me onde comprar comida (não no supermercado “para turista”), como entrar na Catedral sem pagar, como subir a Machu Pichu da forma mais inteligente (já que o Caminho Inca além de lotado, tornou-se caríssimo por exigir guia). Avisou-me para não ter pressa: o Peru tinha greve nacional de transportes no dia seguinte, não havia como ir a Machu Pichu. Foi uma boa forma de refrear a minha ânsia e conhecer Cusco com mais calma. Depois de me despedir da Sra. Maria, que era ex-guia de agência de viagens desempregada, reparei que me esqueci, não retribui a gentileza, não lhe dei nem um “sol”.
Cusco vive essencialmente do turismo que, por sua vez, vive das vocações passadas da cidade. Até à chegada dos espanhóis, o império Inca já se tinha estendido ao norte do Equador e Colômbia, e a Santiago do Chile. O conquistador Francisco Pizarro chegou em 1533 ao Equador, foi descendo e anexando territórios a Espanha. Cusco era Qosqo, “umbigo” do vale andino, uma cidade iniciada no séc. XI, e capital do Império Inca. Pizarro aprisionou primeiro os indígenas do norte que, assustados com os cavalos e armas que nunca tinham visto, e a troco de liberdade, lhe deram o ouro do sul, de Cusco.
O resto, já se sabe, o ouro foi só o primeiro mineral a alimentar a sede do Velho Continente. Usurpada como colónia, Cusco foi saqueada, perdeu o seu carácter central e passou a ponto intermédio do tráfico entre Lima e Buenos Aires, sobre a arquitectura Inca ergueu-se a espanhola. Os Incas, nome que designava originalmente os reis, deram o nome ao povo, que foi desaparecendo do mapa da corte espanhola. Já muito depois da Independência Peruana de 1828, Hiram Bingham (1911) encontrou as ruínas perdidas de Machu Pichu e Cusco voltou a suscitar interesse, pois era a base para ali chegar.
Como em muitas outras nações, após a Independência vieram outras formas de dependência, que evoluíram até hoje, com resultados à vista: 51% dos 28 milhões de peruanos são pobres, 24% são extremamente pobres. Cusco, a cidade mais antiga da América do Sul, está (ironicamente) na zona mais turística do País, que é também uma das mais pobres. À vista andam mendigos, pedintes, crianças sem abrigo que são empurradas pelos pais para posar para fotografias internacionais a troco de trocos. Incomoda-me. Não o pedido, esse é legítimo, mas a sua utópica solução. É aparente e quase hipócrita a atitude de ajudar, ao dar comida ou moedas, quando comparada com os excessos que cometemos em outros consumos fúteis. Os esforços dos Estados por terminar com o “subdesenvolvimento” são tão contraditórios, como o são, os “bons” exemplos morais e económicos dados pelos voluntários europeus na vida nocturna de Cusco.
Diz-se que a Cusco inca tinha a forma de um puma, que a Plaza de Armas (uma denominação urbana espanhola) era unida com a Plaza del Regocijo, e cruzada por um rio, um canal central construído pelos Incas. Os eixos traçados por eles subentendem-se, mas a presença espanhola foi “engolindo” essas memórias, difundiu a tipologia arquitectónica do pátio, dita “conventual”, bem conhecida na Europa.
Já não tenho pressa. Tenho tempo para ver e desenhar nas praças, para ir à parte menos turística da cidade (mais densa), para apreciar a melhor gastronomia sul americana, adivinhar os condimentos, beber “chicha morada”, para conversar com peruanos, para ver as mulheres nos teares, e conhecer os símbolos que tecem. As cores com que tingiam a lã das “llamas”, antes eram extraídas de folhas, sementes e raízes, e incluíam até azuis. Agora são sintéticas. Por dinheiro, muitas matriarcas vendem ponchos de família (alguns com 300 anos), fitas do cabelo, ou “chuspas” (bolsas onde guardavam as folhas de cocaína).
As dores de cabeça que me auto-provoquei (ao passar do nível do mar para os 3.400 m de altitude bruscamente) passaram-me depois dos chás de folha de cocaína e de mascar as folhas. Como as ruínas, o ritual de consumo deste estimulante cardíaco é pré-hispânico, era usado em todo o oriente do continente. A coca ajuda a oxigenação do sangue e acelera a entrega de energia aos músculos. Os mortos levavam na boca folhas para serem bem-aventurados. Os peruanos usaram-na para tirar a fome, suportar frio, fraqueza e exploração das minas de ouro, sal e prata. Essa é a dependência (ou alucinação) que ainda desventra este País. Tão rico e tão pobre.
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.