De partida para o Canyon del Colca o autocarro encheu rapidamente e 10 minutos antes da hora prevista partiu. Aproveitei a vista durante alguns minutos. O céu estava completamente estrelado e o vento que circulava dentro do autocarro não era frio nem desagradável. Pelo menos por esta altura. Contemplava a panóplia de estrelas com que o céu me brindava e, com os meus conhecimentos básicos de astrologia, contemplava com imensa clareza as três-marias bem a meio da constelação de Orion. Acompanharam-me durante toda a viagem como, infelizmente, posso recordar. A estrada não era alcatroada e a trepidação fazia com que a janela lentamente começasse sempre a abrir até trás. Estávamos a subir. Não tinha música como companhia, não tinha saco cama para me agasalhar e não tinha luz para poder continuar a ler o entusiástico livro do Che.
Não consegui dormir. O vento frio começava-me a incomodar e a trepidação, de quando em vez, fazia com que as malas que estavam nas prateleiras de cima caíssem em cima da cabeça dos peruanos. Curiosamente, só as malas dos turistas é que caíam. Os peruanos há muito que têm a experiência de as acondicionar devidamente. Depois da segunda queda desisti e deixei a mochila bem no centro do corredor central. Aos poucos todos fizeram isso. O frio começou-me a enregelar até aos ossos. O pior era da cintura para baixo, só tinha umas calcas finas vestidas. Enrolava-me para me aquecer. Estava de gorro colocado e, ao pescoço, tinha um grande lenço que um dia tinha comprado numa viagem a Marrocos. Dobrei-o metodicamente para me aquecer as coxas. Da cintura para cima já não havia hipótese. Puxava as mangas para trás e esfregava os braços com as palmas das mãos. Esperava que a fricção proporcionasse o calor desejado mas o frio há muito que tinha ultrapassado o nível da derme e da epiderme e começava a apoderar-se dos ossos.
Sem dormir quase nada chegamos a Chivay. Chivay era o ponto mais importante de passagem antes de chegar a Cruz del Condor, local onde eu iria sair. Paramos uma boa meia hora e o motorista fartou-se de buzinar. Só eram 5 da manhã. Estávamos a aproximadamente 3.500 metros de altitude e não havia ninguém na rua. Na verdade, segundo uma teoria por mim agora formulada, a sensibilidade ao som dos peruanos é diferente a qualquer outro povo do mundo. Lá fora uma placa sinalizadora avisava de que, e passo a transcrever traduzido para português: “Proibido mijar na rua. Há casas de banho no interior do terminal.”. Pelos visto é preciso avisar!
Desde Chivay que variadas mulheres tinham começado a entrar no autocarro. Estavam vestidas com trajes tradicionais, coloridos, rendados e bordados. As cores variam de família para família, os padrões dos chapéus condizem com os tecidos que preenchem a zona do peito até ao pescoço terminando com uma gola perfeitamente redonda. As saias, redondas, de várias camadas, condizem com as cores avermelhadas e douradas do resto dos padrões. Os chapéus, de abas largas, estão dobrados atrás e são do mesmo padrão dos tecidos. Tudo muito colorido! Usam sempre uma cinta do mesmo padrão do resto da vestimenta. Para completar só as socas, que não se vêem quando elas estão em pé (já que as saias arrastam pelo chão), iguais a tantas outras e com muito pouca traça tradicional.
A viagem desenrolava-se pela margem esquerda do Colca a aproximadamente 3.500 metros de altitude. Os raios do sol da manhã começavam-me a aquecer aos poucos mas o frio que sentia nos ossos não desaparecia. Só ao ver o sol da manhã já me sentia mais consolado. É incrível o efeito que este astro provocou em mim naquele momento. Lentamente, começava a pintar as montanhas castanhas de uma cor dourada. Começava pelos picos e a tinta parecia ir escorrendo montanha abaixo à medida que o dia se tornava mais dia. Eram 6h da manhã quando cheguei a Cruz del Condor que, tal como o nome indica, é o local privilegiado para ver condores, um animal com uma envergadura tal que a sombra que provocava no chão era simplesmente assustadora.
Estávamos a 3.850 metros. As mulheres que se encontravam no autocarro saíram no mesmo local e foram buscar uma bagagem que já vinha de Arequipa. Eram grandes sacos com material para venderem aos turistas. Todo o tipo de roupas, mantas, gorros, casacos, etc… Tudo estava devidamente acondicionado dentro de umas mantas coloridas tradicionais, famosas em todos os cantos do mundo. Cores garridas preenchiam o ar. Sistematicamente abriam os sacos e preparavam o seu mostruário, rigorosamente vestidas e alinhadas em dois muros de pedra, bem no centro, virados um para o outro. Não estava lá ninguém. Aquela era a primeira camioneta do dia a chegar ao local e eu era o único turista. O sol da manhã hesitava em aquecer-me o corpo e o forro polar não chegava. Decidi comprar uma camisola. Seria a primeira venda do dia para aquelas 10 mulheres. A roupa não era “original” e era fabricada em Arequipa. Todas as manhãs fazia o mesmo trajecto até aquele local. Mesmo sabendo que não seria uma boa compra não pude evitar o negócio. Comprei e em troca pude tirar inúmeras fotografias.
À frente, uma cruz para dar o nome ao local, uns quantos avisos aos turistas e uma escarpa de mais de 1.000 metros. Era o desfiladeiro do Colca, um dos mais profundos do mundo. Conheci Braulio, guarda do parque e personalidade extremamente interessante. Deu-me excelentes informações de locais onde ficar alojado na caminhada e convidou-me para jantar em Cabanaconde no dia da minha chegada. Era um especialista em matéria Inca e um aficionado de todos os trilhos do Colca. Era assistente do departamento de antropologia da Universidade da Califórnia, licenciado em mecânica e extremamente simpático. Disse-me que os condores só deveriam sair da “toca” lá para as 8h da manhã. Todos os dias se repetia o mesmo cenário. Ironicamente, parece que eles esperam que a grande parte dos turistas chegue para se apresentarem à assistência. A verdade é que, aos poucos, uns quantos autocarros de uns tantos tours organizados começaram a chegar. Colocavam-se no miradouro a aguardar o momento próprio para disparar as centenas de máquinas fotográficas que estavam no local. Pouco antes das 8h, quando já estavam mais de 2 centenas de pessoas no local e o parque de estacionamento se começava a revelar insuficiente, os condores saíram. Começaram a planar majestosamente pelo canyon e algumas vezes desviaram a sua trajectória para se vangloriarem a poucos metros dos turistas. Tirei excelentes fotos e apanhei a camioneta das 9h para Cabanaconde, onde iria começar a caminhar.