O restaurante onde vos tinha deixado no relato anterior tinha duas salas. Uma, mais arranjada, pintada e com alguns quadros de Machu Picchu para os turistas. Outra mais descuidada e apenas com um espelho na sua parede bege e suja, cheia de peruanos. Para além do espelho, apenas adornavam a parede uns cartazes amarelos com publicidade à Inca Kola. Escolhi a dos peruanos, junto à porta que fazia ligação à sala dos turistas. Na sala dos turistas decorria um espectáculo de música peruana com bailarinas vestidas em trajes a rigor. O grupo chamava-se “Blanco e Negro” e baseava-se essencialmente, na percussão. Foi uma boa companhia gratuita. Os verdadeiros turistas trataram de pagar o espectáculo oferecido por esta juventude peruana cheia de vida.
Passei a tarde a deambular pela cidade sem destino certo e com vários destinos incertos. Ao final do dia fui comer mais uma espetada ao local do costume, nas pequenas mesas de chapa que vendiam grelhados no passeio. Sentei-me ao lado de um miúdo encardido, mas sorridente, que vendia cigarros e guloseimas naqueles mostruários tipo estádio de futebol. Uma fita a volta do pescoço e um tabuleiro com tudo o que os peruanos precisam. Pilhas, corta-unhas, cigarros avulso, rebuçados, bolachas, batatas fritas, etc. Estava descalço. Estava a terminar a minha espetada quando ele chegou. Ainda tentei falar com ele mas não me dirigiu a palavra. O meu espanhol deve estar muito fraco. Pediu para comer umas tripas, prato este que vinha bem melhor servido que a espetada que eu tinha comido e pelo mesmo preço. Pedi um igual e para minha desgraça não comi até ao fim. As tripas eram extremamente picantes. Envergonhado e embaraçado paguei e saí sem intenções de voltar ao local. A minha sorte é que nessa noite rumaria a Arequipa.
Passei no hotel para recoger a minha mochila e parti rumo à estação de autocarros, à procura da agência CIVA. Partiria as 23h. Ainda era cedo mas tinham-me avisado para chegar com antecedência. Já com o bilhete na mão, parti. Enquanto esperava conheci Pinki, um rapaz peruano que ia para o mesmo destino. Era guia no Canyon do Colca, que era o percurso que eu queria fazer em Arequipa. Apresentou-se e deu-me um cartão do hotel onde me deveria hospedar. Era o mais barato. “Assediou” outros tantos turistas e teve sucesso porque na manhã seguinte estávamos todos na Marlon`s House da Salcedo Family.
A viagem correu relativamente bem. Quando partimos já era noite cerrada. Marco tinha-me marcado um lugar à janela. Acomodei-me e poucos minutos depois começou a haver confusão dentro do autocarro. Havia mais passageiros que lugares. Uns tantos peruanos faziam a viagem com bilhete mas sem reserva. O “pica” daqui do sítio entrou, expulsou os peruanos e acomodou os turistas. Isto assim dito parece muito mau mas foi exactamente o que aconteceu. Abri o meu saco-cama e preparei-me para dormir. Ao meu lado uma turista muito bem arranjada, penteada e com uns oculinhos redondos. Penso que não se mexeu a viagem toda e só para não incomodar o passageiro de trás não reclinou a cadeira. Não trocamos um olhar ou uma palavra durante as 10 horas que durou a viagem. Quando estava quase a adormecer a “besta” (desculpem a linguagem) do inglês que estava atrás de mim começou a espetar os joelhos nas minhas costas. Adverti-o uma vez simpaticamente. Não deve ter percebido pois passou a noite toda a fazer o mesmo. Conclusão: não dormi quase nada. O som do meu Mini Disc fazia-me companhia e a paisagem de fora era simplesmente assustadora. Desértica e com algumas escarpas simplesmente impressionantes. Por aqui e por ali, cruzes a assinalar mortes em acidentes rodoviários. Penso que não há registo de algum acidente neste vale em que tenha havido algum sobrevivente. Pelo menos foi o que eu li no livro do Che, que me tem acompanhado neste início de viagem. Segundo ele afirma, não se sabe de ninguém que o rio tenha devolvido com vida. Não me alarmei porque só li isto em Arequipa! :)
A viagem corria. Não havia luz na pan-americana e apenas um deserto imenso servia de companhia. A música transformava este momento em algo memorável. Vai fazer parte das boas recordações. Não sei porquê mas gosto sempre muito destas viagens. Já com a viagem até Nazca, no colectivo ao final da tarde, senti a mesma coisa. Só não foi melhor por causa da “besta” que estava atrás de mim. Para ajudar começou a abrir a janela e o vento vinha directamente para mim. Ele abria e eu fechava. Foi um jogo muito interessante a noite toda. Só voltamos a cruzar os olhares de novo já em Arequipa e, para ajudar, tivemos de partilhar o mesmo quarto. E, como alguém já disse “Deus escreve direito por linhas tortas”. No dia seguinte, revelou-se uma pessoa sensacional, com quem pude partilhar informações e saber um pouco mais sobre o Inca Trail, que irei ainda realizar.
Antes de chegarmos, um peruano vendedor agarrou no microfone da viatura e com uma voz suave começou-nos lentamente a acordar. Disse umas palavras suaves e começou a falar como que a recitar poemas muito simpaticamente. Na verdade, acordou o autocarro todo e pôs toda a gente com boa disposição à excepção de um galego que estava no lugar oposto ao meu. Falava pausadamente como que a querer atrair a atenção. E conseguiu, pois em 5 minutos, todos estávamos acordados a ouvir o que ele nos tinha para dizer. O objectivo não era alegrar as pessoas mas sim vender um produto milagroso tipo os do faroeste retratados nos livros do Luky Luke. Aquilo fazia bem a tudo. Se tinhas a língua áspera era daquilo que precisas. Se te doíam os ossos, se tinhas dores de barriga, dores de dentes, impotência sexual, dores menstruais, dores de cabeça, vontade de te coçar, dedos partidos, cabeças rachadas, pés chatos, pulsos finos e de tudo o mais esta era a solução. Imaginem que até era recomendado pela Nasa. Pela NASA!!! De poucos em poucos minutos ouvia-se uma voz num castelhano impecável a dizer que era mentira e que o homem era um aldrabão. Era o galego, que era medico e se sentia insultado por todas aquelas baboseiras. Aquele ritual da conversa era claramente estudado. Até tinha a música do Titanic de fundo. Lindo!!! Parecia que não estava ali. Aquilo era coisa de filme. O produto até tinha selo branco do Ministério de Educação. Vinha com o papel com a posologia e tudo. Tudo completo. Só tinha um senão, não se vendia nas farmácias e ele era o único vendedor credenciado. Fabuloso! Gerou-se uma discussão entre o galego e o vendedor que durou poucos minutos. Alguns passageiros peruanos disseram que ele tinha o direito de estar a falar e que eles tinham o direito de escolher comprar. Conclusão: muitos foram enganados. Compraram e o que desejo agora e que pelo menos o efeito psicológico que o produto gerou tenha alguns frutos positivos.
Chegamos a Arequipa. Fui o último a sair do autocarro para não ter que levar com os taxistas. Quando saí não estava lá ninguém. Apanhei um táxi pelo preço justo (já me tinha informado com um casal de peruanos dentro do autocarro) e fui directo à Marlon`s House.