Ainda não conhecia Chiloé, mas já me tinham falado dos seus mitos e tradições culinárias e sabia que esta ilha chilena era habitada por “chilotes”. Estes são o fruto da mestiçagem entre espanhóis e indígenas locais. O povo é conhecido nacionalmente pelo seu isolamento e hospitalidade, pelo sotaque diferente e, mais uma vez, porque se sentem esquecidos neste território insular e austral.
Parti para Chiloé, mas acompanhada da minha mãe e sua prima, ambas por pouco tempo no Chile. Preparei-me para algumas adaptações no ritmo e forma de viajar e voamos até Puerto Montt, onde eu já tinha estado. Este é o ponto de “embarque” para os vários destinos nacionais a sul, aos quais só se chega por mar. Ou por terra, mas pela Argentina. Alugámos um carro (foi bom voltar a conduzir ao fim de tanto tempo) e cruzámos em ferryboat o Canal de Chacao, que separa o Pacífico do mar interior.
Esta região, com apenas 150 mil habitantes, tem “duas caras”: por um lado a interior, de águas planas e aldeias pitorescas, que se comunicam por barco; e por outro a oeste, do Pacífico bravo, praticamente sem presença humana, e onde se chega por acessos de terra enlameados e pontes de madeira.
Quando os espanhóis aqui chegaram, no século XVI, iniciaram a colonização através da evangelização dos nativos. Entretanto, construíram cerca de 100 igrejas com mão-de-obra, materiais e técnicas locais. Hoje existem 60 e várias estão declaradas Património da Humanidade, atraindo turistas e mochileiros que trazem movimento à ilha.
A mesma madeira (alerce e cipreste) que foi usada para edificar estas capelas foi fortemente exportada, embora subsista uma paisagem verde e húmida, que parece original. Para isso contribuem as “nalcas” ou “pangues”, uma espécie vegetal nativa do Chile e da Argentina, cujas folhas são enormes, usadas na gastronomia chilota, ou para protecção da chuva.
A cidade (aldeia, na realidade) mais importante da ilha é Castro. Aqui estão outros exemplos inteligentes da “arquitectura sem arquitectos”. Devido às enormes diferenças entre as marés esta zona é inundada frequentemente. Para ultrapassar o problema, as casas ergueram-se sobre estacas. Estas construções de “pernas” estreitas chamam-se “palafitos”.
Entre as aldeias mais importantes comunica-se por barco. Há uns molhes, uns ilhotes desertos no meio da neblina, cheiro a peixe fresco, mariscos vivos. Esta atmosfera é propícia à forte identidade do lugar com o mar. Os mitos chilotes são parte dessa identidade, e abalam até alguns descrentes… as sereias, o duende Trauco (que engravida as mulheres que o encontrarem), a sua irmã Fiona, os cavalos-marinhos, o navio fantasma Caleuche (com uma festa a bordo) e os bruxos aparecem frequentemente.
No Chile, já comi vários mariscos que não nunca tinha visto antes, entre eles o piuri (que é 90% de iodo viscoso, engolido cru e com limão). Em Chiloé provei os dois pratos típicos famosos, o curanto e o milcao. O primeiro é um misto de mariscos com carne, cozinhado na terra entre as folhas de nalca. O milcao é uma batata cozida, com aspecto de panqueca. Esta gastronomia também foi levada para a Patagónia pelos emigrantes chilotes, no início do século XX.
Nos últimos dias na ilha vimos as fumarolas do vulcão de El Chaiten (que entrou em erupção em Março de 2008, na parte chilena da Carretera Austral). Cruzámos até ao lado do Pacífico aberto, o mar estava revoltado e branco de tanta espuma. Ao longe viam-se várias enseadas cobertas de nevoeiro, onde não há acesso a não ser de barco. A aldeia, Cucao, tem cerca de dez casas, no meio das nalcas, que nascem da areia e são comidas pelas poucas vacas. Não é difícil de acreditar na mitologia neste sítio. Voltámos até à estrada principal, um eixo longitudinal que corta a ilha em duas. Já não chovia, e no canal entre os dois mares vimos várias focas aproximarem-se.
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.