O tempo para gozar as férias seguiu ao ritmo do calendário europeu. Saio de férias em Portugal e chego a meio de um trimestre aqui, e por isso decidi partir para o Norte do Chile, seguir a viajar até que comecem as aulas “desde o início”. Saí em pleno Verão, chego em pleno Inverno, dos dias compridos à noite antecipada, do céu europeu, a um céu que é diferente, que nunca tinha visto ao sul da linha do Equador, a um dos céus mais límpidos do mundo.
Parto com a mochila e tenda em direcção ao Valle Elqui, um vale junto à cordilheira dos Andes. Levo alguns destinos em mente. Quem mos aconselha é um novo amigo chileno, experiente nas viagens e nesses lugares onde o turista comum não chega. Chego a Coquimbo, porto da cidade de La Serena, onde as imagens do Papa estão por toda a parte. Ele esteve aqui. Pequena cidade porto, esta mais suja, onde me ponho à conversa com um vendedor de colares: tem pedras bonitas, pergunta-me de onde venho, fala português e as pedras, tal como ele, são do meio da Amazónia. Pergunto-lhe porquê aqui, mas está de passagem também ele, oferece-me uma pulseira com uma pedra e deseja-me boa sorte. Este foi dos primeiros vendedores de rua, dos hippies que se deslocam pelas ruas de cidades da América do Sul, a quem perguntei em que lugares já tinha viajado… geralmente sabem bons lugares para visitar.
O objectivo era surfar uma onda perto de Coquimbo mas, depois de várias perguntas, começo a perceber que não há como chegar. Sigo, então, em direcção à cordilheira, ao vale onde estão situados vários observatórios de estrelas, inclusive da Nasa. Tudo isso se justifica diante do espectáculo de estrelas que vejo, ao chegar de noite a Pisco Elqui. Não queria chegar de noite, mas enfim, conheci uma italiana que estava a dar a volta ao mundo e que me deu a direcção de vários lugares de alojamento.
Cheguei e foi impressionante. Nem palavras nem imagens são fiéis ao que se vê, porque o cenário é tão vasto, profuso, que chega a parecer artificial. Nunca vi nada assim, em nenhuma parte do mundo. A luminosidade varia com o tamanho das estrelas, e como se agrupam originam manchas brancas. O ar é frio, puro, com níveis de poluição baixíssimos. Alojo-me numa pequena hospedaria, trato de baixar o preço – “sin desayuno” – e, na manhã seguinte, desperto com a cordilheira em primeiro plano! Estou “colada aos Andes” e penso no preço ridículo que paguei por esta vista.
Passeio por Pisco Elqui, pueblo pequeno onde estão adegas para prova do Pisco, bebida alcoólica forte, destilada de uva, que os chilenos tanto apreciam. Há uma rua principal, uma perpendicular com uma igreja, umas 40 casas, algumas cabanas turismo, uns pequenos negócios… e nada mais.
Visito Horcón, o último pueblo na base da montanha. É um lugar conhecido pelo misticismo, o tarot, as plantas medicinais, o yoga, reiki, as terapias de aromas, aqui na sua versão mais hippie: quem faz e vende os produtos são os artesãos hippies deste lugar, que daqui sacam as suas sementes, mel, perfumes, etc. Um pueblo de hippies no fundo-fim do vale, com um rio ao lado. Apelos à não-violência, drogas e álcool na arquitectura de palha.
3 km para chegar a Montegrande, outro trajecto em que espero boleia. Desde que cheguei a Pisco Elqui não vi mais “bus”. Aqui estão isolados, há poucos carros, poucas ruas asfaltadas e, infelizmente, a minha boleia não chega. Caminho debaixo de um sol abrasador com a mochila. Derreto em pleno Inverno, na cordilheira dos Andes. Em Montegrande está a casa-escola-correio da poetisa chilena Gabriela Mistral, lugar modesto, casa alpendre, pequenina, bem proporcionada. Várias paredes com versos dela, um pisco com o seu nome.
Espero de novo boleia, mas não passa ninguém. Junta-se um cão a mim, quero chegar ainda de dia ao pueblo de Cochiguaz, e chego. Monto a tenda, informo a mãe do dono do camping que estou a acampar aí, junto ao Rio Mágico, que vem gelado desde lá de cima, do cume da montanha. Este lugar tem, no máximo, umas 10 casas. Depois uns centros de turismo caros, com massagens, mas no camping sou a única pessoa em hectares de natureza. É a primeira vez que acampo sozinha na vida. Faço a minha fogueira, como, e apago com o dia solar. Acordo a meio da noite, anda alguém de volta da minha tenda, escuto passos, vejo uma luz, e sinto um cão farejar. Tenho uma lanterna péssima (que não me atrevo a acender), o camping não tem luz, enfim apanho um susto. Pergunto, no único comércio aberto, quem era o dono/guarda do camping, quem poderia ter andado de volta da tenda, etc…a dona do café aconselha-me a sair do parque, o dono é especialmente louco com mulheres, meio perigoso. Enquanto desmonto a tenda e me mudo para uma pequena cabana aqui perto, ponho-me a pensar nos riscos que corri, e vejo passar vários velhotes com o típico chapéu chileno a cavalo. Mais tarde tranquilizo-me, os donos da cabanita para onde me mudo oferecem-me o meu primeiro “asado en la parrilla” chileno, ou seja, comer carne no churrasco e no campo, com vinho, salada e muitas conversas.
Sigo para norte, medindo riscos desta primeira etapa da viagem ao norte do sul. Tudo seria diferente se eu fosse homem, meço vantagens e desvantagens. Aproveito a boleia de uma família que vai sair daqui do fim do mundo, sigo na parte de trás da pickup e vejo todo este vale da melhor perspectiva possível. Vou de costas para o condutor, respiro o pó, vejo o cão que me acompanhou enquanto eu caminhava pela estrada. Vejo-os ficarem mais pequeninos, as montanhas surgirem umas atrás das outras, tudo isto sob a luz de Inverno.
O melhor é aproveitar enquanto a viagem é ao ar livre, esperam-me várias horas de camioneta para chegar ao norte do sul.
Por Sofia Valente
A Sofia é uma surfista do Porto que está na América do Sul a fazer um ano do curso de arquitectura e, claro está, a viajar e a surfar sempre que pode.